quarta-feira, 15 de agosto de 2012


6.3- Locais de residência


 
A chácara de CJM, com os engenhos de erva-mate, localizava-se em frente ao prédio do atual Colégio Estadual do Paraná, na av. João Gualberto. Hoje, o local é assinalado apenas por um portal em forma de arco que foi o que restou da construção antiga ali existente. Esse portal dava acesso à residência e às “Imperiais Fábricas Fontana”, conforme foto de 1886 publicada em boletim da Casa Romário Martins (1). A propriedade de toda a área, com os engenhos, após a morte de CJM, foi transferida para a firma Silva & Irmão, seus consignatários em Montevidéu, certamente como pagamento de dívidas, pelo que se deduz das informações apresentadas antes neste trabalho, especialmente no cap. 4. Depois disso, a razão social mudou para Silva, Irmão & Fontana, quando Francisco Face Fontana, veio do Uruguai para cá e associou-se ao empreendimento. Com a dissolução da sociedade, Fontana tornou-se seu único dono, estabelecendo então as Imperiais Fábricas Fontana (“fábricas”, no plural, porque correspondia aos dois engenhos de mate, que receberam aperfeiçoamentos técnicos).  

Na época, a avenida João Gualberto era conhecida como “Estrada da Marinha” ou “da Graciosa”. Foi nessa propriedade, segundo Alcides Munhoz, que CJM deu uma recepção ao Conselheiro Zacarias, recém chegado a Curitiba. O escritor assim se refere a essa recepção, narrando um episódio muito revelador da psicologia de CJM e do peso do convencionalismo social da época:

   Para a recepção ao Conselheiro Zacarias mobilizaram-se todas as forças de casa. As escravas, muito bem tratadas, os mais perfeitos tipos femininos da raça africana e que constituíam o patrimônio do solar foram aplicadas no serviço íntimo, ajudando no preparo da cozinha, na confecção dos mais variados produtos de pastelaria, na doçaria e no adorno interior da habitação.
   Frequentava a casa, na intimidade da família, uma senhora muito meiga, muito dedicada e de finos traços de beleza. Meu avô dedicava-lhe rara estima; tratava-a como pessoa sua; admirava-lhe as distintas maneiras que possuía; gabava sempre a beleza de suas mãos muito alvas e extremamente delicadas que sabiam tão bem coadjuvar os trabalhos caseiros de suas filhas e de sua esposa.
   A senhora também prestou-se, com a dedicação usual, aos arranjos para a recepção do Conselheiro.
   No dia em que se ia realizar a recepção, meu avô chamou em particular a senhora amiga e disse-lhe, com toda a franqueza, naquele aspecto de um sistema inquebrantável de princípios:
  -- F..., hoje o Presidente da Província virá a nossa casa. Terei que apresentar-lhe minha esposa, minhas filhas, meus amigos e as famílias presentes. Acho, pois, conveniente que não apareça na sala... como hei de apresentá-la!...
   A pobre senhora tinha, como único defeito de sociedade, uma incerteza matrimonial.
   Os princípios rígidos de moral levaram meu avô a esse extremo descontentamento a uma pessoa amicíssima de seu lar (2)

  O artigo de Rodrigo Júnior—“Curitiba em 1853”, publicado na “Revista da Academia Paranaense de Letras”, faz referência à residência do tenente-coronel Caetano José Munhoz localizada não na “Estrada da Marinha” mas no Largo da Ponte do Ivo (hoje Praça Zacarias) (também no “Boletim do Arquivo Municipal de Curitiba” ocorrem referências a CJM como aí residente). Ele mantinha então duas residências, uma no Alto da Glória, a mais antiga (pois a instalação do Engenho da Glória é de 1834), e a outra, na atual praça Zacarias, junto aos familiares de sua 1ª. esposa, D. Francisca, filha de João Gonçalves Franco, com quem se casou em 1840. Também os pais da 2ª esposa moravam na região. Foi nessa segunda residência, como vimos, que se realizou a festa de casamento da filha Augusta, em 1870.
 
  Rodrigo Júnior assim se refere à região da cidade próxima à praça Zacarias em 1853: 

   A rua mais movimentada /.../ era a do Comércio (hoje Marechal Deodoro), onde se achavam estabelecidas lojas de fazendas e armarinhos, negócios de secos e molhados, e uma padaria, a única da cidade.
   Sob as chuvas de inverno ou de Janeiro, transmudavam-se as vias públicas em verdadeiros pantanais, que unicamente o heroísmo da gente necessitada ousava arrostar, ali patinhando, a atolar-se, às vezes, até os tornozelos. De resto, é isto bem compreensível sabendo-se que grande parte da cidade se encontra assentada num buraco, em local, então, em extremo alagadiço, referindo Jesuíno Silva que, em anos precedentes à época em foco, o futuro Largo do Chafariz (agora Praça Zacarias) tinha uns vislumbres de brejo estendido até a ponte existente sobre o rio Ivo (situada em frente à atual rua Marechal Deodoro), com vasto lameiro defronte à residência do Brigadeiro Franco, “onde havia sido montado antes um engenho de socar erva-mate, que já encontramos de todo arruinado” (refere-se ao engenho do Ajudante João Gonçalves Franco, sogro de CJM).  Mais tarde, apesar da pouca solidez do terreno, é que, naquele largo, se edificaram as primeiras habitações (flanco correspondente à rua Emiliano Perneta do nosso tempo), depois que, por meio de valas abertas, foi possível conseguir-se a ressecação do aludido banhado (3)

Percebe-se por aí que as duas residências de CJM, próximas aos rios Ivo e Belém, localizavam-se em regiões alagadiças, problema aliás de todos os habitantes da cidade, com o qual eram obrigados a conviver. Foi por isso que um periódico lítero-humorístico local, de 1898, intitulou-se “O Sapo”...

Segundo o artigo citado, não só o tenente-coronel CJM mas também seu irmão, o major Bento Florêncio Munhoz,  morava no Largo da Ponte do Ivo. Por outro lado, na rua da Entrada (hoje Emiliano Perneta) moravam filhos de João Gonçalves Franco como o brigadeiro Manuel de Oliveira Franco e João de Oliveira Franco (irmãos de Francisca, a 1ª. esposa) assim como Antônio de Paula Xavier (pai da 2ª. esposa de CJM,  Narcisa).  

  F.R.Azevedo Macedo afirma que havia ali, em 1820, uma “ponte de pranchões” sobre o rio Ivo, por onde Saint-Hilaire passou, vindo de Castro. Esse trecho da “estrada de Castro” seria convertido na “rua nova da entrada”. E prossegue aquele autor, em obra já referida anteriormente:

A praça, que depois tomou o nome de Zacarias /.../, dependeu não só de uma ponte de madeira sobre o Ivo, com aterro ao nível da rua do Comércio /.../, mas também de um aterro ou entulho à margem direita do rio Ivo.  Foi então localizada, a partir desta praça na lomba por onde descia a estrada de Castro, a rua “da Entrada”, depois “do Aquidaban” e hoje “Emiliano Perneta”. A referida praça Zacarias e a rua da Entrada surgiram, portanto, depois da instalação da Província, isto é, depois de 19 de dezembro de 1853 (4).   

  Referências no jornal “Dezenove de Dezembro” fornecem alguns subsídios adicionais sobre a questão.

  Em edital, publicado em 1855, do juiz substituto CJM sobre arrematação de animais, ele indica o local do evento: “em casas de minha residência” (5).

  Em 1856, o jornal faz menção ao armazém de CJM na rua do Comércio (6).

  Em 1857, o DD faz menção à casa “do Sr. Munhós” na rua da Assembleia  (atual Dr. Murici) (7).        

  Em 1864, edital da Câmara Municipal de Curitiba

faz público, que acha-se em arrematação, a quem por menos fizer, o calçamento macadamizado da rua do Comércio a principiar da casa do tenente-coronel Caetano José Munhós até onde finda a casa de João José Correa de Bittencourt e bem assim o calçamento /.../ (8).  

Consultando o processo de inventário de CJM, iniciado logo após o seu falecimento em julho de 1877, verifico que são mencionados na relação dos bens o “engenho de socar erva-mate movido a água com casa de morada e benfeitorias além do rio Belém”, avaliado em 10 contos de réis, o “engenho de socar erva-mate movido a vapor, situado pouco além do primeiro no Alto da Glória”, avaliado em 7 contos de réis, e a casa situada na rua do Comércio, avaliada em 3 contos e 200 mil réis.  

Há também aí alguma informação sobre o mobiliário das duas  residências, o que dá uma ideia de seu interior. Além de um piano, consta nessa relação doze cadeiras, um sofá de palhinha, quatro consoles e uma mesa redonda de madeira, um espelho grande dourado, um candelabro, dois pares de jarras e um toucador com pedra de mármore.   

São arrolados também 5 escravos, um dos quais “incapaz de qualquer serviço”,  e o relógio de CJM com a respectiva cadeia de ouro. A avaliação dos bens resultou num total de 24:960$000. Foram avaliadores Ignacio José de Moraes e  Benedicto Enéas de Paula. 

Na transcrição do livro de assentamentos de CJM, que integra o processo de inventário, há registros do final de 1872 relativos à compra de mobília no Rio de Janeiro em nome de seu filho Alfredo, no valor de 286$000, e também, no começo de 1873, relativos ao transporte dessa mobília do Rio a Paranaguá, e depois a Antonina, e daí para Curitiba:   

- Frete no “Fluminense” do Rio a Paranaguá da mobília e mais desp.ªs até Antonina- 64$042
- Condução da mobília pª cá- 40$000.          

Vale destacar ainda outra informação desse livro de assentamentos. É a das despesas com itens alimentares obtidos externamente às propriedades de CJM, realizadas em 1870-71, indicando o tipo de consumo dele e sua família. São citados aí: arroz, feijão, açúcar refinado e não refinado, farinha de milho, farinha de mandioca, pães, carne fresca, lombo de porco, toucinho, charque do Rio Grande, charque da terra, galinha, ovos, manteiga, chá, café, vinagre e aguardente.    

A planta anexa refere-se a Curitiba no início da década de 1860 (9). Constata-se aí que a cidade estava assentada entre dois rios (Belém e Ivo), junto aos quais localizavam-se as residências de CJM, a mais antiga na  Estrada da Marinha e a outra, no Largo da Ponte do Ivo, situada na esquina das ruas da Assembleia e do Comércio.        




NOTAS



(1) FUNDAÇÃO Cultural de Curitiba- “Boletim Informativo da Casa Romário Martins”- v. 28 nº 126 ago.2001- op cit, p.41

(2) MUNHOZ, Alcides-- “Folhas Cadentes” (Elogio do Patrono)”. Curitiba:Irmãos Guimarães & Cia, 1925- p. 14-15. O autor afirma nessa passagem que “Todo o lado esquerdo do atual bairro do Alto da Glória, pelo Boulevard Onze de Junho, constituía o seu latifúndio. Aí tinha ele o seu solar e, ao lado, o engenho de erva-mate”. Na realidade, o nome correto é Boulevard 2 de Julho, denominação aprovada pela Câmara Municipal de Curitiba em 1883, bem depois do falecimento de CJM (1877), como está escrito no cap. 4 deste trabalho. Antes dessa afirmação, Alcides Munhoz chama seu avô de “figura de alta representação social daquele tempo”, o que exigiu dele, deduzo, a obrigação de oferecer  recepção ao presidente Zacarias.      

(3) RODRIGO Júnior- “Curitiba em 1853”, p. 357-367 in “Revista da Academia Paranaense de Letras” nº 10, abril-junho de 1941, p.358.

(4) MACEDO, F.R. Azevedo – “Conquista Pacífica de Guarapuava”. Curitiba: Fundação Cultural, 1995- p. 46 (nota)

(5) DD de 13.06.1855- p.4

(6) DD de 23.04.1856-p.4

(7) DD de 23.12.1857- p. 3

(8) DD de 3.09.1864-p.4 (republicado com alterações no DD de 21.09.1864- p.4). O patrimônio de CJM já havia sido afetado por um incêndio em 1868 (certamente sem a importância daquele de 1879 antes referido), pois no “Extrato do Expediente da Presidência”, de 23 de novembro desse ano, consta o seguinte despacho: “Ao capitão comandante da companhia de polícia, louvando o zelo e atividade com que se houve, bem como das praças de seu comando, e mais pessoas que o coadjuvaram  na extinção do incêndio que, no dia 21 do corrente, manifestou-se na casa de propriedade do tenente coronel Caetano José Munhós, em ocasião que se achava este ausente” (cf  DD de 2.01.1869- p. 1).

(9) O “Boletim Informativo da Casa Romário Martins” v. 28, n. 126- ago. 2001, op cit, p. 6, data de 1862 essa planta, apesar de nela constar o ano de 1857, pois leva em conta observações de Romário Martins a seu respeito. 

Planta de Curitiba datada de 1857
(Fonte: "Imagens da Evolução de Curitiba" por Otávio Duarte e Guinski. Curitiba, 2002- p. 27)

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