quarta-feira, 15 de agosto de 2012


8. CONTRAPONTO: O CONTÍNUO/PORTEIRO FIDÊNCIO MUNHOZ



      Gostaria de concluir este trabalho referindo-me a Fidêncio Antônio Munhoz, um membro de condição mais humilde dessa família que, como vimos, está presente no Brasil desde o século XVI. Ele tanto pode descender desses primeiros Munhoz quanto daqueles que vieram para cá mais recentemente, em meados do século XVIII, vale dizer, dos ancestrais de CJM, que se estabeleceram em Paranaguá.      

     Estabeleço assim, neste capítulo dedicado a Fidêncio, um contraponto com as considerações anteriores, que se referiam aos representantes dessa família de mais elevado “status” social, pertencentes, como ficou evidenciado, à elite paranaense do século XIX.    
       
    Pretendo aqui mostrar, da forma permitida pelos dados disponíveis, o modo como se inseriu na sociedade curitibana dessa época alguém de condição profissional subalterna, que todavia aparece citado com certa frequência no “Dezenove de Dezembro”, não só na sua parte oficial. Seu nome aparece, às vezes, associado aos membros da família de CJM, ao participarem conjuntamente das irmandades e festas religiosas. Da mesma forma, Fidêncio é signatário em manifestações de apreço, abaixo-assinados e atas, juntamente com as pessoas que o meio considerava mais importantes, na política ou economia.

      A explicação disso, a meu ver, reside na religião, que como vimos ocupava um papel mais importante no tempo do Império do que hoje, quando o Estado é laico. Em nossa sociedade, de tradição judaico-cristã, é corrente um pressuposto idealista, que não se confirma na realidade, de que “todos somos iguais (perante Deus)” ou de que “todos somos irmãos, filhos do mesmo Deus”, o que mascara a profunda desigualdade nela existente, maior ainda naquele tempo (todavia, esse pressuposto não chegava a abranger os escravos...). Assim, em nome dessa concepção, as pessoas de baixa condição social podiam até ser aceitas pela sociedade curitibana da época, nas irmandades religiosas, em eventos públicos, cerimônias oficiais etc. No caso de Fidêncio, o fato dele ter o mesmo sobrenome de CJM e seus parentes na Curitiba daquela época, e de ser funcionário público, ainda que modesto, certamente lhe dava condições mais vantajosas do que outros, de posição mais baixa na hierarquia social...
   
Na lista dos cidadãos da paróquia de Nossa Senhora da Luz de Curitiba, organizada pela respectiva junta de qualificação eleitoral, de 1876, consta o seguinte sobre Fidêncio: tinha 39 anos de idade (sic), era casado, empregado público, filho de Luiz Antonio Munhoz, tinha 600$ de renda anual, sabia ler e era elegível (1).   
 
Na realidade, ele tinha 41 anos em 1876 pois, conforme registros no Cemitério Municipal S. Francisco de Paula, faleceu em 13 de fevereiro de 1902, “aos 67 anos”, sendo natural de Curitiba (essa data é confirmada pela nota de falecimento publicada em “A República” do dia 14, p.1, que o chama de “nosso amigo“ e afirma que “ele, desde muito tempo, exercia a profissão de vendedor de bilhetes de loteria”). Deduz-se daí que ele nasceu em 1835.

 Seu nome não aparece na “Genealogia Paranaense”. Mas consta ali um Luiz Antonio Munhoz, nascido em Paranaguá, que se casou em 1838 com Ana Maria da Luz (de quem não teve descendentes) e era filho de Antonio José Munhoz e Rita Maria (2). Seria esse Luiz o pai de Fidêncio? Se foi, e como Fidêncio nasceu antes do casamento referido, ele poderia ser seu filho natural...  A mãe de Fidêncio faleceu em 1856. Sei disso por uma nota publicada no jornal (3). Ele agradece aí às pessoas que compareceram à missa que mandou celebrar na Matriz de Curitiba “pelo eterno repouso” de sua mãe, cujo nome contudo não menciona (por que não?). Sua esposa chamava-se Leandrina Maria do Espírito Santo Munhoz (4). Isso indica que Fidêncio, não só pelo seu sobrenome como também pelo de sua esposa, poderia ter alguma relação de parentesco com CJM, pois, como vimos anteriormente, Florêncio José Munhoz, o pai deste, era sobrinho de Catharina Maria do Espírito Santo, de quem herdou, aliás, sua propriedade rural na baía de Paranaguá. Mas a relação precisa de parentesco de Fidêncio com CJM, se é que existiu, não consegui precisar...        

                        Também já vimos, ao tratar das origens familiares de CJM, que nem todos os Munhoz de Paranaguá desfrutavam de boa situação econômica. Vieira dos Santos citou um certo Antônio José Munhoz (seria o avô de Fidêncio?), que recebia auxílio financeiro da Ordem Terceira de S. Francisco das Chagas para viver, conforme deliberação de sua congregação em 1820, “por impossibilidade de doenças e não poder trabalhar” (5). Também os Munhoz residentes em S. José dos Pinhais, mencionados no “Dezenove de Dezembro”, não tinham o mesmo “status” social de CJM, de seu irmão ou cunhados (6).

                        A mais antiga referência à atividade profissional de Fidêncio é a de contínuo da Tesouraria de Fazenda. Ele é citado no relatório do primeiro presidente da província do Paraná, conselheiro Zacarias de Góes e Vasconcelos, de 15 de julho de 1854. Tinha então cerca de 19 anos. Seu nome consta de uma relação dos empregados da Tesouraria de Fazenda e respectiva remuneração (mapa nº 16, p. 147). Como contínuo  recebia um ordenado anual de 200 mil réis, valor que subiu para 300 mil réis (mantendo Fidencio o mesmo cargo), conforme relação semelhante anexa ao relatório do vice-presidente J.A. Vaz de Carvalhaes, de 7 de janeiro de 1857 (mapa nº 7, p. 75). É curioso notar que a remuneração do cargo mais elevado na hierarquia da Tesouraria, o de Inspetor, não era então muito maior que a sua. Importava em 600 mil réis anuais, remuneração essa que permaneceu inalterada nesses dois relatórios (assim como a de porteiro: 150 mil réis).

                        Em duas edições do “Dezenove de Dezembro” de 1857 consta sua nomeação para o cargo de contínuo da Tesouraria de Fazenda, e definição de atribuições. Deve ter sido readmitido a esse cargo pelo vice-presidente Carvalhaes, uma vez que já constava do relatório de 1854 nessa condição. Desde janeiro de 1857, Fidêncio  foi encarregado, “provisoriamente”, do arranjo e conservação do cartório dessa Tesouraria, o que explica o aumento da sua remuneração (7) (ele trabalha assim na Tesouraria de Fazenda antes de nela ingressarem -- e fazerem carreira --  Alfredo C. Munhoz e seus irmãos).

                        Em 17 de outubro de 1857 Fidêncio foi nomeado porteiro do Liceu de Curitiba, conforme consta do relatório do Inspetor Geral do Ensino Público, Dr. Joaquim Ignacio Silveira da Mota, transcrito em outro relatório, o do vice-presidente J.A. Vaz de Carvalhaes, ao passar a administração da província ao presidente Francisco Liberato de Mattos nesse ano de 1857 (p. 41). No ano seguinte é referido no “Dezenove de Dezembro” como “porteiro do liceu”, a quem foi concedida licença de 15 dias, a contar de 3 de julho de 1858 (8).   

O Liceu de Curitiba, origem do atual Colégio Estadual do Paraná, havia sido criado pela lei nº 33, de 13 de março de 1846, sancionada pelo presidente  da província de S.Paulo, conforme Ernani C. Straube  (foi criado assim antes da nossa emancipação política). Seu quadro de pessoal abrangia 1 diretor, 4 professores e 1 porteiro, “com funções também de controlador da frequência dos alunos”. Estava instalado num prédio mandado construir pelo Conselheiro Zacarias em 1854, prédio “de um só pavimento, construído em área útil de 990 m2, com dez janelas, uma porta e com frente para a rua da Assembleia” (hoje,  Dr. Muricy), demolido em 1923 para dar lugar a outro, que sedia atualmente a Casa Andrade Muricy. Em 1857 foi criada uma biblioteca anexa ao Liceu, que se tornaria a Biblioteca Pública do Paraná (9). Como já foi dito, CJM e seu irmão Bento Florêncio contribuíram financeiramente numa subscrição em favor dessa Biblioteca.

Mas em 1863 Fidêncio é referido como porteiro da Tesouraria de Fazenda (e não do Liceu). No relatório do presidente Antonio Barbosa Gomes Nogueira, apresentado à Assembleia Legislativa Provincial em 15 de fevereiro de 1863, seu nome consta da relação dos funcionários da Tesouraria Provincial como “porteiro” (p.52). Todos eles decidiram contribuir com 50% de seu ordenado de um mês para o fundo destinado a cobrir despesas extraordinárias do Império face à ameaça inglesa, tendo em vista a atitude de seu representante diplomático (cf Questão Christie, já comentada no cap 5, seção 5.1, deste trabalho). Os funcionários da Tesouraria Provincial contribuíram mais do que a maioria das outras repartições. São todos elogiados pelo presidente A.B. Gomes Nogueira neste relatório. Conforme ofício que lhe foi encaminhado pela comissão responsável pela subscrição, o movimento decidiu “que o produto da coleta fosse aplicado para fortificar os portos da província, e no caso de sobras para a compra de armamento da guarda nacional” (p 53).

A Tesouraria Provincial foi separada da Tesouraria Geral por ato desse mesmo presidente, em 1º de setembro de 1862, conforme consta na p.26 de seu relatório. Assim, desde a instalação da província (1853) até essa data a expressão “Tesouraria de Fazenda” refere-se tanto à administração das finanças do governo provincial quanto do governo geral. Com a separação, Fidêncio vincula-se à Tesouraria Provincial.      

Em 1868, Fidêncio é citado como porteiro do Liceu de Curitiba em uma edição do DD (10). Mas no final desse mesmo ano consta no jornal que ele é um  dos nove signatários empregados da Tesouraria de Fazenda Provincial que encaminham carta elogiosa ao Dr. Joaquim Dias da Rocha, quando este deixa a inspetoria desse órgão público (11). As duas instituições funcionavam até 1869 no mesmo prédio, aquele da rua da Assembleia mencionado acima, o que deve explicar o fato de que ele ora é mencionado como porteiro do Liceu, ora como porteiro da Tesouraria. O Liceu transferiu-se naquele ano para outro imóvel. Mas a Tesouraria Provincial permaneceria ali (12). E Fidêncio também permaneceria vinculado a ela.

Em 1867, o porteiro da Tesouraria provincial recebia uma remuneração anual de 600 mil-réis. O contínuo recebia apenas um ordenado de 360 mil-réis. Para efeito de comparação, o dirigente da Tesouraria, o inspetor, recebia 2 contos, 160 mil réis. Esses dados constam da Tabela Explicativa ao Orçamento da Despesa da província para 1867-1868, anexa ao relatório do presidente Polidoro Cezar Burlamaque de 15 de março de 1867.  

Por algum tempo, Fidêncio complementou sua renda da Tesouraria com a de recenseador. Sebastião Ferrarini, em sua “História de Quatro Barras”, transcreve um quadro estatístico contendo os dados do recenseamento, realizado em 1870, da população da paróquia de Nossa Senhora da Luz. Fidêncio Antônio Munhoz é citado nesse quadro como um dos recenseadores da secção 9 da cidade de Curitiba. A paróquia abrangia além desta, 28 localidades próximas, hoje bairros de Curitiba ou municípios da sua Região Metropolitana, como Santa Quitéria, Pilarzinho, Atuba, Borda do Campo, Campo Magro, Conceição, Butiatuva, Butiatuvinha, Pacutuba (atualmente, Almirante Tamandaré), Ribeirão da Onça, Tranqueira, Veados, Campo Comprido, Tatuquara etc (note-se essa presença da fauna local em sua denominação, indicando o caráter ainda rústico da região...). A propósito, constatou-se na paróquia uma população de 12.641 habitantes, dos quais 10.344 eram livres, 965 escravos e 1.332 estrangeiros (13).   

Em 25 de setembro de 1874, Fidêncio recebeu um terreno no quadro urbano de Curitiba, conforme certidão da Câmara Municipal de Curitiba, publicada no jornal, que cita as pessoas beneficiadas por essa medida (14).  

Nesse ano continua trabalhando na Tesouraria Provincial, pois o DD refere-se a uma informação dessa entidade sobre um requerimento seu, em que é mencionado como “porteiro desta repartição(15). No ano seguinte, 1875, o jornal informa que o “porteiro” Fidêncio Munhoz é um dos signatários da carta de despedida que os empregados da Tesouraria Provincial dirigem ao Dr Bento Fernandes de Barros, o qual está deixando a  inspetoria da repartição (16).   

Em 1876 Fidêncio Munhoz, “porteiro do tesouro provincial”, encaminha  requerimento à Assembleia Legislativa Provincial, “pedindo autorização para sua aposentadoria”. O requerimento é encaminhado às comissões de Justiça e Fazenda (17). Como Fidêncio era funcionário provincial, cabia à Assembleia Legislativa da província e não ao Executivo autorizar tal providência. O DD de 10 de maio de 1876- p. 4 publica a Lei  do Orçamento relativa ao período de 1 de julho de 1876 a 30 de junho de 1877, sancionada pelo presidente Lamenha Lins (o exercício fiscal não coincidia então com o civil, como ocorre atualmente). Nas Disposições Permanentes a lei menciona Fidêncio Munhoz ao reconhecer a esse “empregado da tesouraria provincial”, para fins de aposentadoria, “o tempo que exerceu o cargo de contínuo na tesouraria geral”. Como vimos acima, ele iniciou sua vida profissional pela Tesouraria da Fazenda, empregou-se no Liceu de Curitiba e depois  transferiu-se para a Tesouraria Provincial, por onde se aposenta agora.  Tinha, como vimos, 41 anos em 1876. Ele já devia cumprir então os requisitos para a aposentadoria. Mas só obtém a aposentadoria em 12 de fevereiro de 1879, conforme consta do relatório do presidente Rodrigo Octavio de Oliveira Menezes de 31 de março desse ano, p. 91, que acrescenta, após esse registro, “continuando esse funcionário em exercício do lugar”. Continuou na Tesouraria da província, certamente como comissionado. Em 1879, ele completou 25 anos desde 1854, ano em que exercia o cargo de contínuo da Tesouraria de Fazenda, de acordo com a menção feita a ele no relatório do presidente Zacarias antes referido. 

Em 1880, Fidêncio é um dos 13 signatários de uma nota de felicitação dos empregados do Tesouro Provincial dirigida ao seu chefe Dr. Francisco Alves Guimarães, ao deixar a gerência interina dessa repartição (18).

Antes disso, ainda em 1879, o DD de 24 de abril (19) publica aviso da Sociedade Lotérica Paranaense, assinado pelo seu “presidente” Fidêncio Munhoz. Avisos em outras edições do jornal, de 1880 e 1881, informam que certos bilhetes, identificados por seus números, são de propriedade dos sócios ali mencionados, um dos quais é Fidêncio. Em 1878 uma lei destinou os recursos de 10 loterias para as obras da nova igreja matriz da capital (20) (esta levaria 17 anos para ser concluída, em 1893). Em 25 de maio de 1879 ocorreu, no prédio da Assembleia Provincial, a extração da 1ª loteria em benefício de tais obras, conforme o relatório do presidente Manuel Pinto de Souza Dantas Filho de 4 de junho de 1879, p. 22.  Esse mesmo presidente, em outro relatório (de 16 de fevereiro de 1880, p.31), afirma que em 24 de novembro mandou entregar à comissão encarregada das obras da nova matriz o valor de 6:452$900, “produto líquido” da 1ª loteria. Esse montante, acrescido do “produto de subscrições, donativos particulares e os materiais da velha matriz”, possibilitaria a retomada das obras. Em breve, diz ele, seria extraída a 2ª. loteria.  

Dentre as alternativas econômicas que busca, para lhe reforçar o orçamento futuro, como aposentado, está a fiscalização da iluminação da capital. No DD de 26 de dezembro de 1877- p. 2 consta que Fidêncio Munhoz e Josino Tito da Costa pediram à presidência da província gratificação pela fiscalização da iluminação da capital. O requerimento foi indeferido, com a alegação de falta de verba. Mas é sugerido a eles que solicitem à Assembleia Provincial.

Em 1884, a remuneração de um porteiro da Tesouraria Provincial, conforme o relatório do presidente Oliveira Bello de 22 de agosto desse ano, p.78, era de 700$000. A remuneração mais alta era do inspetor-- 3:000$000 e a mais baixa a do contínuo-- 600$000. Essa Tesouraria da Fazenda Provincial contava ao todo com 10 funcionários. 

Em 20 de agosto de 1885, com a queda do gabinete Saraiva, os liberais -- que dominavam o governo imperial desde 1878 -- são substituídos pelos conservadores, assumindo nessa data o gabinete do Barão de Cotegipe, o que naturalmente repercute sobre o governo provincial, a direção de sua Tesouraria, e até mesmo sobre o porteiro desta.

Alguns dias depois daquele fato, no DD de 28 de agosto, p. 3, consta esta nota: “Foi dispensado a seu pedido do cargo de porteiro do tesouro provincial o porteiro aposentado Fidencio Antonio Munhós”.  Logo depois, o DD de 5 de setembro de 1885, p.2-3, publica carta de Fidêncio endereçada ao inspetor do Tesouro Provincial Francisco Alves Guimarães em que ele lhe agradece pelo modo como foi tratado, apresenta aos colegas sua manifestação de estima e afirma retirar-se “saudoso” da repartição. Como se vê, ele, apesar de funcionário subalterno, procedia como os superiores. Na edição do jornal do dia seguinte, dia 6 (21), consta que tanto o inspetor quanto o tesoureiro ten-cel Benedicto Eneas de Paula (destacado na carta de Fidêncio Munhoz como de sua estima) foram exonerados “ontem”, a pedido, do Tesouro Provincial. Infere-se assim que Fidêncio se solidariza politicamente com eles, figuras importantes do Partido Liberal. F. Negrão informa que Francisco Alves Guimarães (1845-1890) formou-se pela faculdade de Direito de S.Paulo, ocupou vários cargos públicos e foi deputado à Assembleia Provincial em várias legislaturas. E que o coronel Eneas, sogro de Generoso Marques dos Santos, foi “grande proprietário e capitalista abastado”, também deputado à Assembleia Provincial em várias legislaturas, “Camarista e presidente da Câmara Municipal de Curitiba diversas vezes” (22)..   
   
Deixando o cargo de porteiro da Tesouraria, retorna às atividades lotéricas. O DD de 19 de maio de 1886- p. 3 publica nota assinada por Fidêncio Munhoz sobre assunto relacionado a loteria (alteração de n° de série). Ele se assina como “bilheteiro”.  Três meses depois, o jornal mostra que ele já está estabelecido, ao publicar este anúncio da “Flor Curitybana”, situada na praça de D. Pedro 2º, nº 39 (atual praça Tiradentes) (23):

Agência de bilhetes de loteria da província, dirigida por Fidencio Munhós. Tem sempre variado sortimento de boas marcas de cigarros e charutos assim como sementes de hortaliças novas.

            Mas havia também na cidade a “Agência geral das loterias do Paraná”, a cargo de Ciro Veloso, pai de Dario Veloso (1869-1937), então adolescente. Ciro seria prefeito de Curitiba em 1889 e dirigente do Clube Curitibano de 1889 a 1901 (24).

                                               *

Até aqui busquei indicar o modo como Fidêncio se inseria na sociedade curitibana de então em termos profissionais. Vou tentar agora caracterizar a sua presença em outras atividades, com base nas referências feitas a ele no “Dezenove de Dezembro”, desde as mais antigas.  

Em 1859, a julgar pelos dados citados acima, Fidêncio Antônio Munhoz tinha cerca de 24 anos de idade, e era porteiro do Liceu de Curitiba.   Apesar de ser um funcionário humilde, tinha altivez suficiente para encaminhar ao jornal esta carta (reveladora de boa instrução), publicada no DD (25), em que critica o coronelismo de então em nome dos novos tempos e reclama, em tom irônico, da injustiça cometida contra ele:

Sr. redator—Tendo eu no domingo 9 do corrente mês e ano saído ao campo em procura de um animal, que havia desaparecido, fui violentamente acometido pelo Sr. Candido Machado Fagundes e 4 escravos seus, que lhe formavam o séquito.
Depois de me haverem estes 5 leões deitado por terra, e coberto de mil injúrias, ordenou o Sr. Candido Machado que eu fosse amarrado, o que fielmente cumpriram os seus comparsas. Assim estive por algum tempo entregue à brutalidade desses 5 campeões, ouvindo impassível as vociferações de ladrão de cavalos e outras; e, quem sabe, até onde iria o bom acolhimento que me fazia o Sr. Candido Machado, a não passar na ocasião uma tropa?
Este procedimento do Sr. Candido Machado é digno dele, que supõe poder ainda reviver os antigos tempos em que cada um praticava impunemente atos tais. Hoje, porém, mudaram-se as cenas; os nossos baxás (*) de aldeia vão sendo chamados ao cumprimento de seus deveres pela força e moralidade das autoridades, que não atendem para as posições acidentais do indivíduo, quando tratam de distribuir justiça.
Publicando estas linhas, Sr. redator, o meu fim é tornar patente este ato de selvageria, para que outros se não exponham a iguais tratos de delicadeza do sr. Candido Machado.             Sou &c.
                        Fidencio A. Munhós
                        Curitiba, 11 de janeiro de 1859.
                        -----------------------------
(*) Baxá ou paxá:Título dos governadores de províncias do Império Otomano. Fig. e pop. Indivíduo poderoso e insolente; mandão” (dic. Aurélio)


O arrogante Candido Machado Fagundes era um empreiteiro de obras públicas, referido nos relatórios dos presidentes da província do período 1864-1869, contratado para executar os seguintes projetos: construção de uma ponte sobre o rio S.João, na estrada da Graciosa, no valor de 1:900$000 (26);  uma ponte, quatro pontilhões e aterros cobertos de areia na estrada de S. Francisco, bem como um desvio nos lugares denominados Miringuava e Miringuava-mirim pela quantia de 2:300$000 (juntamente com Alberto Wedelstett) (27); obras na estrada de Campo Largo a Palmeira, no valor de 818$000 (28); serviços na estrada do Arraial, pelos quais recebeu  2:391$360 (29).

Em 1865, Fidêncio era “irmão procurador” da Irmandade do Senhor Bom Jesus do Perdão (ou dos Perdões, como é também chamada), existente na igreja de N Sra do Rosário, em Curitiba (além desta, havia aí as irmandades do Rosário e de S.Benedito, dos pretos). Consta que tal igreja foi a segunda construída em Curitiba, em 1737, após a Matriz, de 1715, que substituiu a antiga Igreja de N Sra da Luz e Bom Jesus dos Pinhais existente no local, dos primórdios da cidade, “naturalmente alguma ermida de madeira, onde se celebravam os ofícios religiosos desde 1654”, segundo F. Negrão). A igreja do Rosário foi a Matriz da cidade durante a construção da atual Catedral (1875-1893) (30).


Curitiba- região da atual praça Garibaldi (a antiga igreja do Rosário é a primeira à esquerda)- foto do início do séc. XX
(Fonte: Boletim Casa Romário Martins-"Centro Histórico". Curitiba: Fund. Cultural, v.30, nº 130- mar.2006, p. 87) 

O DD de 20 de maio de 1865- p. 4 publica duas notas assinadas por Fidêncio como procurador. Na primeira, convida os irmãos a comparecerem no consistório daquela igreja para a eleição da nova mesa da Irmandade; na segunda, comunica que será festejado no dia 25 de maio o Senhor Bom Jesus do Perdão com missa solene e procissão à tarde. Lembra também que serão cobradas as “entradas e anuais dos irmãos e irmãs que têm deixado de pagar” (31).

Cabem aqui duas citações. A primeira, do “Dicionário do Brasil Colonial”, embora a época histórica a que pertencem as observações deste capítulo não seja mais essa. Há que se reconhecer, todavia, o peso da tradição, e a lentidão das mudanças sociais. Além disso, nossa sociedade continuava a ser escravista, característica básica do período colonial:

Perpassando de alto a baixo a sociedade colonial, as irmandades  /.../ integravam seus respectivos associados em redes de sociabilidade e de solidariedade /.../ havia-as de pobres ou da elite; havia-as de escravos, libertos ou homens livres; havia-as, enfim, de brancos, mestiços ou negros (32). 

A segunda citação é de outro Dicionário, o do Brasil Imperial, organizado pelo mesmo historiador (Ronaldo Vainfas),  e salienta a diferença entre as

poderosas  irmandades das santas casas de Misericórdia, que reuniam os mais bem situados de cada localidade, e o das irmandades de Nossa Senhora do Rosário, que atraíam os descendentes de africanos em todo o Império (33).  

Essas observações, apesar de se constituírem em generalizações a partir da história do Brasil, são úteis pelo que sugerem sobre a nossa realidade local.  

Em 1867, consta no jornal (34) nota sobre nova eleição, realizada em 29 de maio desse ano, da mesa dessa mesma Irmandade que vai funcionar no “ano compromissal” de 1867 a 1869. Compareceram à eleição 152 irmãos. Saíram eleitos, dentre outros, Fidêncio Antônio Munhoz como “procurador” (com 77 votos) e o tenente Caetano Alberto Munhoz (filho de CJM) como um dos 12 “mesários” (com 74 votos).

Fidêncio também é citado no DD como “procurador” da Irmandade do Senhor Bom Jesus do Perdão nos anos de 1871 e 1872. Em dezembro de 1871, ele informa que serão rezadas missas pela alma dos irmãos instituidores capitão Ermelino Marques dos Santos e Claudino José Pereira na igreja de N.Sra. do Rosário no altar do Senhor Bom Jesus do Perdão. Nos anúncios de 1872 ele convida a população para a “missa cantada em louvor do mesmo Senhor” e também convida os irmãos para comparecerem à eleição dos administradores da Irmandade que será realizada na igreja do Rosário (35).   Nessa eleição, Fidêncio foi eleito um dos 12 “mesários” da Irmandade (36).  A “juíza” é a sra. Emília Vidalvina do Pilar França e o “juiz”, o sr. Bento Antonio de Menezes (esse músico conceituado já foi referido quando tratei do casamento de Augusta, filha de CJM). A nova mesa eleita, relativa ao “ano compromissal de 72 a 73”, tomaria posse no dia 7 de julho de 1872. No ano seguinte, Fidêncio é reeleito como um dos 12 mesários da mesma Irmandade (37). Depois de 1873, seu nome não mais será citado no DD como procurador, ou mesário, da Irmandade do Senhor Bom Jesus do Perdão. Mas será citado como um simples “irmão” muitos anos mais tarde, em 1888 (38), o que significa que ele continuava membro da Irmandade, mas sem participar de sua administração.   

Fidêncio, por outro lado, constará ainda como “procurador” da festa de N. Sra da Conceição, realizada em 8 de dezembro na capela de S. Francisco de Paula, ao longo do período 1875-1880. Após 1880, também deixará de ser referido de modo associado a essa festa religiosa.  

A capela citada havia sido construída no Alto de S.Francisco em 1809. A intenção da época era construir ali uma igreja de maior porte, pois as três existentes estavam em condições muito precárias (igreja Matriz, da Ordem e do Rosário). Mas enquanto a capela existiria durante todo o século XIX e só seria demolida em 1915 (na gestão do prefeito Cândido de Abreu), a igreja não chegou a ser construída, restando dela apenas as ruínas de sua fachada (39).

Em 1874, sob o título “Festividade”, o jornal informa que se realizou, “na capela de S.Francisco de Paula, a missa cantada em louvor de N.S. da Conceição”. Na sequência, a nota aponta quais são os festeiros para o ano vindouro: o juiz é Eleutério José de Freitas, a juíza D. Maria da Conceição Freitas, e o procurador é Fidêncio. Dentre os “noveneiros” citados constam os nomes de Adolpho Ribas de Oliveira Franco (sobrinho de CJM) e D. Augusta Candida Munhoz Negrão (filha de CJM). Fidêncio também será festeiro em 1877 e 1878 (40). Em 1876, o DD traz nota assinada pelo procurador Fidêncio  informando que a  festa de N Sra da Conceição foi transferida para 8 de dezembro “do corrente ano”, “na igreja de S. Francisco de Paula”. Em edições posteriores do DD, ele, como procurador, informa sobre missa em louvor de N Sra da Conceição e pede o comparecimento de todos para acompanharem “a mesma Senhora” da rua do Rosário à igreja Matriz; informa também que a festa de 1879 foi transferida para 8 de dezembro de 1880. Confirma depois, mais próximo da data, que a festa será realizada nesse dia, “começando as novenas no dia 29 de novembro corrente”. Um dos “noveneiros” citados é Francisco David Perneta (o pai de Emiliano). Informa ainda que a festa de 1881 foi transferida para o ano seguinte (41).   

O espírito comunitário de Fidêncio Antônio Munhoz, evidenciado pela sua participação ativa na Irmandade Senhor Bom Jesus dos Perdões e em festividades religiosas, também se revelou no apoio que prestou a diversas famílias enlutadas, e na fundação da Sociedade Protetora dos Operários. Essa é a conclusão que se tira das frequentes referências a ele em notas de agradecimento publicadas no “Dezenove de Dezembro” e também nas notícias sobre essa Sociedade.

D. Presciliana da Costa Abreu, por exemplo, ao retirar-se para o litoral, agradece, por uma edição do DD de 1876 (42), aos médicos que atenderam ao seu “sempre lembrado” marido Manoel do Nascimento Abreu e a alguns “dignos cidadãos que também se prestaram generosamente a todos os atos religiosos independente da mínima retribuição”. Fidêncio Munhoz é um desses cidadãos, citados nominalmente. Uma semana depois, em outra edição do jornal (43), consta que D. Presciliana foi nomeada “para reger interinamente a cadeira do sexo feminino do povoado de S. João da Graciosa”. A julgar pelos casos de D. Narcisa e D. Maria do Céu antes referidos, e também o desta senhora, o magistério era uma alternativa profissional para as viúvas (e solteiras) obterem alguma renda, numa época em que a Previdência Social não existia, ou era ainda embrionária.  

Em outras edições do DD, nos anos de 1877, 1880, 1881, 1883 e 1887,  notas de familiares enlutados citam Fidêncio dentre as pessoas que agradecem (44). Merece destaque, por revelar um aspecto inédito da personalidade de Fidêncio, a nota da família do falecido Benedito Antônio da Luz, publicada no DD, em 1883 (45). Ela agradece, além do médico Dr. Trajano Reis, dos padres e alguns outros, três pessoas, uma delas Fidêncio Munhoz, “distintos músicos, pelo memento (46) que se dignaram cantar”. Em 1885, Fidêncio foi novamente um dos cantores, desta vez na missa de 7º dia do padre Júlio Ribeiro de Campos (vigário geral forense da província do Paraná, já referido, de quem Florêncio José Munhoz, filho de CJM, era muito amigo, assistindo-o no leito de morte). Nessa missa cantada solene de réquiem, o coro dos padres (em que um deles tocava o órgão da igreja Matriz) foi auxiliado “pelos prestimosos cantores Srs. Ramires, Jegé, Júlio Lange e Fidencio Antonio Munhós” (47). Na mesma edição do jornal, p. 3, consta nota de agradecimento do padre José Joaquim do Prado, vigário da igreja Matriz de Curitiba (48), às pessoas que colaboraram por ocasião das exéquias solenes e missa cantada, inclusive “Fidencio Antonio Munhós e mais excelentes cantores”.  

Com relação à Sociedade Protetora dos Operários, o DD de 27 de junho de 1883- p. 4 informa que ela foi instalada em Curitiba, e cita a sua diretoria.  Fidêncio é o vice-presidente, sendo presidente, Manoel de Azevedo da Silveira Júnior, “espírito inculto, mas muito inteligente, conhecedor de diversas profissões manuais, sendo a de tanoeiro a principal”, nas palavras de Andrade Muricy sobre o pai do poeta simbolista paranaense Silveira Neto e o avô do também poeta Tasso da Silveira) (49). Compunham a diretoria, ainda, o 1º secretário Eulampio Rodrigues de Oliveira Vianna, o 2º secretário Affonso Guilhermino Wanderley, o tesoureiro Salvador José dos Santos, o procurador João Baptista G. de Sá e os comissários Candido Norberto Lopes e Gabriel Vieira. Na mesma edição do DD, consta anúncio do Circo Sul-Americano, cujo espetáculo seria em benefício da nova  sociedade.

A Sociedade Protetora dos Operários é a mais antiga entidade associativa dos operários locais dentre as relacionadas no livro “A Greve Geral de 17 em Curitiba”, onde se afirma que a iniciativa de sua fundação foi do pedreiro Benedito Marques. Seus membros, segundo a mesma fonte, eram “liderados pelo jornalista Agostinho Leandro, que na época publicava um jornal conhecido como Operário Livre(50).  
   
Em julho de 1883, o “Dezenove de Dezembro“ publica matéria elogiosa à Sociedade, e transcreve carta do Dr.Trajano Reis dirigida ao vice-presidente (Fidêncio), em que  agradece ter sido escolhido “sócio benemérito” da entidade. Também o farmacêutico Francisco Jerônimo Pereira Pinto Requião ofereceu-se “gratuitamente para ministrar os medicamentos aos associados, em casos necessários” (51).  

Dr. Trajano Reis


Os sócios se reuniriam no dia 29 de julho de 1883  “a fim de eleger-se a nova diretoria que tem de servir durante o semestre de agosto deste ano a janeiro de 1884” (52). Antes mesmo da Sociedade publicar seus Estatutos, ela já estava atuando em benefício do seu público-alvo. O DD de 4 de agosto de 1883- p. 3 publica, em “A Pedido”, nota de agradecimento à entidade assinada por Bernardino de Freitas Saldanha, a rogo de Francisco de Paula Mendes. Sua filha, de dois anos de idade, faleceu e a Sociedade lhe deu apoio “em tão angustioso momento”.

Constata-se assim um caráter assistencialista na Sociedade, mas a sua constituição significava um avanço para a época. Assegurava, ao menos, atendimento médico (viabilizado especialmente pela colaboração do Dr. Trajano Reis e de Francisco Requião) ou auxílio funeral aos operários e suas famílias. Aliás, quanto ao Dr. Trajano Reis, alguns anos antes, em 1880, Fidêncio foi um dos membros da comissão constituída para homenageá-lo, ofertando-lhe o seu retrato a óleo, como prova de gratidão. Também segundo o DD, a festa em sua homenagem reuniu mais de 300 pessoas. O Dr. Joaquim de Almeida Faria Sobrinho (que alguns anos mais tarde seria presidente da província) foi o orador dessa festa. Mas Fidêncio também falou, por parte da população agradecida (53). Certamente foi graças a esse bom relacionamento de Fidêncio com o Dr. Trajano que ele obteve o envolvimento do médico em favor dos membros da Sociedade... além naturalmente da disposição generosa deste em atender gratuitamente aos pobres, como constava em seus anúncios no jornal (não só dele, mas também de outros médicos, nessa época, contrastando com a atitude pouco generosa desses profissionais da saúde atualmente...).  

Em 3 de outubro de 1883, o DD, na p.4,  inicia a publicação dos Estatutos da Sociedade Protetora dos Operários, cujo objetivo ali expresso é “socorrer ao sócio e aos desvalidos que involuntariamente cair (sic) na desventura e precise do auxílio do próximo” (a publicação é concluída no DD de 31 de outubro do mesmo ano, p. 3). No final do texto, Fidêncio, é um dos signatários, como vice-presidente. Mas não o será por muito tempo mais. O DD informa que em 18 de novembro haverá eleição para a escolha do vice-presidente, 1º secretário e orador da Sociedade (54). E logo depois o jornal publica nota da Sociedade Protetora dos Operários informando os sócios que foram eleitos para os cargos vagos da diretoria. A nota começa assim:

   Em vista de ter sido dispensado do cargo o vice-presidente e terem pedido suas exonerações o 1º secretário, orador e procurador desta sociedade, procedeu-se a eleição extraordinária a fim de preencher os lugares (55).

Em 6 de dezembro do mesmo ano, 1883, outra nota da Sociedade comunica que na sessão do dia 2 Fidêncio foi eliminado “a bem da sociedade”, porque “deixou de satisfazer compromissos, cuja deliberação foi tomada em sessão do dia 28 de outubro próximo findo” (56). Que compromissos são esses, a nota não esclarece. De qualquer forma, o episódio revela que Fidêncio tinha personalidade forte, era fime em suas convicções e não se adaptava facilmente às circunstâncias com as quais discordava.   

Conforme o DD, em 1887 a Sociedade celebraria seu 4º aniversário em 29 de janeiro (57). Logo, ela foi constituída formalmente nessa mesma data, em 1883. Trata-se da atual Sociedade Beneficente e Protetora dos Operários estabelecida em sede própria no Alto de S.Francisco desde 1902 (58).

  Referi-me acima ao bom relacionamento entre o Dr.Trajano Reis e Fidêncio. É a esse médico que ele recorre quando um filho seu foi ferido brutalmente. No DD de 31 de agosto de 1884- p. 4 consta nota de agradecimento por parte de Fidêncio e Leandrina Maria do Espírito Santo Munhoz ao Dr. Trajano Reis, e também ao farmacêutico Francisco Pereira Pinto Requião pelo atendimento que deram ao seu filho Luiz “que recebera um horrível golpe de machado na cabeça”. Destacam os esforços que o Dr.Trajano empregou no “milagroso curativo” que fez em Luiz. Este não era o único filho de Fidêncio, pois edição do jornal de novembro de 1883 também cita João Gerêncio Munhoz, que foi ilegalmente excluído do alistamento militar e é naquela data convocado (59).  

                        Existem mais algumas menções a ele no “Dezenove de Dezembro” que gostaria de incluir aqui, a fim de completar essa tentativa de retratar as circunstâncias sociais da vida de um Munhoz de condição mais humilde, em constraste com as de outros membros dessa família, pertencentes à elite curitibana de então. Todos esses fragmentos esparsos, os anteriores e os que apresento a seguir, reunidos de forma sistemática, talvez possam lançar alguma luz sobre o seu meio e o seu tempo.  

Fidêncio foi signatário, como vimos, de diversas manifestações elogiosas dos empregados aos dirigentes de sua repartição, ou do governo provincial, quando eles deixaram os respectivos cargos. Além dessas, ele assinou também outras, de caráter diverso, como indico a seguir.

É um dos cidadãos que assinam, em 19 de dezembro de 1873, o “Termo da colocação da pedra fundamental do novo mercado desta cidade”, situado no Largo da Cadeia, atual praça Generoso Marques. O mercado municipal, cujo prédio foi efetivamente construído, ali funcionou de 1874 a 1913, quando a Prefeitura o transferiu para outro local. Em seu lugar construiu o Paço Municipal, inaugurado em 1916. O primeiro nome da lista citada é o do presidente Frederico José Abranches. Alfredo C. Munhoz, filho de CJM, também consta dessa lista (60). Ele era então Contador da Tesouraria de Fazenda.

No ano seguinte, 1874, Fidêncio assinou a ata da União Curitibana relativa à cerimônia de colocação da pedra fundamental do Teatro S.Theodoro, antecessor do teatro Guaíra (a União Curitibana era uma “sociedade teatral beneficente” presidida pelo Dr. Agostinho Ermelino de Leão). Outro signatário da ata é Manoel de Souza Dias Negrão, genro de CJM (61).

F.A. Munhoz, “empregado público”, foi uma das pessoas que assinaram a manifestação de apreço ao ministro Cansação de Sinimbu pelo decreto “que tornou realizável a estrada de ferro do porto D.Pedro II, em Paranaguá, para esta capital”. A publicação da longa relação de nomes é concluída em “O Paranaense” de 8 de julho de 1879, p. 2. Constam aí também os nomes de Adolpho Ribas de Oliveira Franco (“empregado público”), F. de Paula Ribeiro Vianna (“t. coronel”), Nivaldo Teixeira Braga (“diretor do Colégio Curitibano”), Carlos Vieira da Costa (“empregado público”), Jesuíno da Silva Lopes (“gerente do ‘Dezenove de Dezembro’”), dentre outros.  

Muitos anos depois, em uma edição do DD de 1888, o nome de Fidêncio também consta numa longa relação de pessoas que dão “um público testemunho de consideração, afeição e amizade” ao vigário da paróquia de N. Sra da Luz de Curitiba, padre José Joaquim do Prado, que está deixando de exercer tal função (62).  

Antes disso, nessa década de 1880, o jornal menciona ainda seu nome quando publicou notícias sobre doações ao Museu provincial e também sobre a inclusão de cidadãos no alistamento eleitoral e na reserva da Guarda Nacional.
 
O Museu Paranaense foi aberto ao público em 25 de setembro de 1875, ocupando um prédio localizado na atual praça Zacarias, segundo o “Dicionário Histórico-Biográfico do Paraná”. Era inicialmente uma instituição particular, mantendo-se “graças ao zelo de seus fundadores e às contribuições do favor público”. “A 22 de maio de 1880 recebeu a visita do Imperador Pedro II e nas suas dependências foi realizado o sarau oficial em homenagem ao Imperial Visitante”. Em 1883 tornou-se órgão público, incorporando-se ao governo da província do Paraná (63).  

Logo no início dos anos de 1880, constam notas sobre doações que Fidêncio fez ao Museu provincial, como muitas outras pessoas da comunidade também fizeram, certamente atendendo a apelos formulados nesse sentido. Assim, no DD de 31 de janeiro de 1880- p. 4, consta que Fidêncio doou ao Museu uma moeda de cobre da Bélgica (e Bento Munhoz da Rocha, “o modelo de uma corveta a vapor fabricado em Antonina”). No final do mesmo ano Fidêncio doou uma moeda de cobre de 1762 da Alemanha (64).  Posteriormente, em 1882, também doaria uma moeda de cobre. Desta vez, russa, de 1872 (65).  

            No começo de 1881, foi baixado, como vimos, o decreto nº 3.029, de 9 de janeiro, a chamada “Lei Saraiva”, que aboliu o sistema indireto de eleição de deputados e senadores. Os cidadãos, para poderem votar, deviam alistar-se como eleitores. Em março desse ano, o DD publica os nomes dos cidadãos que  requereram tal alistamento, um dos quais é Fidêncio (66). Ele satisfazia aos critérios então vigentes para ser eleitor, pois seu nome constará posteriormente na relação dos incluídos no alistamento eleitoral da paróquia de Curitiba. Essa relação integra o edital do juiz de direito da comarca da capital, Dr. Agostinho Ermelino de Leão, publicado pelo DD em junho de 1881 (67). De acordo com ela, Fidêncio pertence ao 2º distrito, 5º quarteirão: é o nº 259 (anteriormente, no final de 1879, o DD publicara a divisão de Curitiba em dois distritos policiais, cada um com 16 quarteirões, que são aí identificados pelas ruas e bairros) (68). Aparentemente, com essa maior precisão da localização do domicílio do votante, buscava-se um aperfeiçoamento do processo eleitoral, que continuou contudo a apresentar problemas. A “Lei Saraiva” substituiu toda a legislação eleitoral anterior. Além de abolir a eleição indireta, tornava o alistamento eleitoral permanente (69). 

Em 1884 o jornal publica, em várias edições, a relação “dos guardas nacionais alistados para o serviço da reserva pelo conselho de qualificação da paróquia de Nossa Senhora da Luz do município de Curitiba”.  A parte da relação que é publicada na edição de 25 de julho de 1884- p. 4 menciona Fidêncio Munhoz. Dentre os nomes aí citados constam os do comendador Antonio Alves de Araújo, Emygdio Wetsphalen e Generoso Marques dos Santos. É curioso como uma sociedade profundamente desigual como a dessa época escondia sua verdadeira face.  Fidêncio consta nessa relação ao lado de gente muito rica como o comendador Araújo ou de políticos importantes como Generoso Marques. Afinal todos eles eram iguais (perante Deus)...



NOTAS


(1) DD de  6.05.1876- p. 4. Essa edição do jornal continua a publicar tal lista, iniciada  no DD de 29.04.1876- p. 3.

(2) NEGRÃO, Francisco—“Genealogia Paranaense”- op cit, v.VI, p. 296. 

(3) DD de 13.02.1856-p.4

(4) DD de 31.08.1884- p. 4.

(5) SANTOS, Antônio Vieira dos-- “Memória Histórica de Paranaguá”- op cit, v.II, p. 138.

(6) Algumas menções a esses outros membros da família Munhoz feitas no jornal: DD de 21.12.1872- p. 2; DD de 12.11.1873- p. 3; DD de 15.11.1873- p. 1; DD de 3.05.1873- p.4; DD de 3.03.1877- p. 3 

(7) DD de 6.05.1857-p.2; DD de 13.05.1857- p. 2.

(8) DD de 7.07.1858-p.1

(9) STRAUBE, Ernani Costa—“Do Licêo de Coritiba ao Colégio Estadual do Paraná: 1846-1993”. Curitiba: Fundepar, 1993- p.5, 10-15; ver também “DICIONÁRIO Histórico-Biográfico do Estado do Paraná”- op cit, p. 88

(10) DD de 1.01.1868- p. 3. Consta aí despacho mandando pagar ao “porteiro do liceu Fidencio Antonio Munhós a quantia de 16$, importância das despesas feitas com o asseio do mesmo liceu e biblioteca pública, nos meses de Outubro e Novembro últimos”.

(11) DD de 25.11.1868, p.3

(12) STRAUBE, Ernani Costa-- op cit,  p.14-15 

(13) FERRARINI, Sebastião—“História de Quatro Barras”. Curitiba: Editora Universitária Champagnat, 1987- p.122. Além das citadas, a relação das 28 localidades inclui Paiva, Ahu,Uberaba, Alto, Palmitar, Cachoeira, Morro Grande, Beixininga, Juquiri, Marmeleiro, Serro Negro, Campo Novo, N. Sra das Mercês e Capivari. 

(14) DD de 10.02.1875- p. 3

(15) DD de 24.10.1874- p.2. Trata-se de informação da Tesouraria Provincial à presidência da província com opinião favorável ao requerimento de Fidêncio, “porteiro desta repartição”, encaminhado à Assembleia, pedindo autorização para que lhe fossem restituídos 384$000 pelo serviço que prestou como porteiro do Liceu. No DD de 7.11.1874- p.1, consta despacho da presidência mandando a Tesouraria Provincial restituir a Fidêncio aquela importância. Ver também DD de 27.05.1874- p.3.

(16) DD de 1.05.1875- p.3

(17) DD de 12.04.1876-p. 2

(18) DD de 6.03.1880- p.3

(19) DD de 24.04.1879- p.4

(20) Trata-se da lei nº 504, de 12.05.1878. Ver ainda: DD de 4.09.1880- p. 4; DD de 11.09.1880- p. 4; DD de 21.09.1881- p. 4.  A “Província do Paraná” de 10.05.1879- p. 4 também informa que os recursos da Loteria Provincial eram destinados às obras da nova Igreja Matriz de Curitiba.

(21) DD de 6.09.1885- p. 2

(22) NEGRÃO, Francisco- “Genealogia Paranaense”- op cit, v.I, p.437-439; v.II, p.118-119

(23) DD de 17.08.1886- p.3
(24) Cf anúncio no DD de 18.08.1886- p.2. Cf também NEGRÃO, Francisco—“Genealogia Paranaense”- op cit, v. III, p. 256; HOERNER JÚNIOR, Valério et al.-- “Academia Paranaense de Letras: biobibliografia”- op cit, p. 140. 

(25) DD de 12.01.1859- p. 4

(26) Relatório do vice-presidente Sebastião Gonçalves da Silva apresentado na Assembleia Legislativa Provincial em 21.02.1864, p.37.

(27) Relatório do presidente André Augusto de Padua Fleury, apresentado na Assembleia Legislativa Provincial em 21.03.1865, p. 43.

(28) Relatório do presidente André Augusto de Padua Fleury, apresentado na Assembleia Legislativa  Provincial em 15.02.1866, p. 49.

(29) Relatório do presidente Antonio Augusto da Fonseca, apresentado na Assembleia Legislativa Provincial, em 6.04.1869, p.18-19.  

(30) FEDALTO, Pe. Pedro- “A Arquidiocese de Curitiba na sua História”- op cit, p. 41 e 181 

(31) Conforme o DD de 24.05.1865- p. 4 houve alteração da data da festa e da eleição da nova mesa

(32) VAINFAS, Ronaldo (org.)- “Dicionário do Brasil Colonial”- op cit, p. 317.

(33) VAINFAS, Ronaldo (org.)- “Dicionário do Brasil Imperial”- op cit, p. 390.

(34) DD de 1.06.1867- p.4

(35) DD de 16.12.1871- p.4; DD de 4.05.1872- p.4

(36) DD de 11.05.1872- p.4

(37) DD de 11.05.1872- p.4; DD de 22.05.1872- p.4; DD de 6.07.1872- p.4; DD de 8.10.1873- p. 3

(38) Nota da Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Perdões, publicada no DD de 6.10.1888- p.3 e assinada por seu procurador Joaquim Castilho Gomes, informa que “os irmãos” Fidêncio Antônio Munhoz e Francisco Antônio de Paula “foram encarregados de proceder à cobrança dos anuais vencidos”. A nota pede que “todos os irmãos que se acham em débito queiram satisfazer visto ter a mesma irmandade de atender a certas despesas ultimamente autorizadas” (essas despesas relacionavam-se, talvez, à construção da igreja do Senhor Bom Jesus dos Perdões no Largo da Misericórdia, cuja pedra fundamental fora colocada em 15.08.1886- v. antes, seção 5.4 do cap. 5).

(39) BAPTISTA, Vera Regina Biscaia Vianna—“Ruínas de São Francisco: dois séculos de história e mito”. Curitiba: V.R.B.V.Baptista, 2004- p. 10-13 e  34

(40) DD de 10.03.1877- p. 3; DD de 22.12.1877- p. 3

(41) DD de 12.12.1874- p. 4; DD de 29.01.1876- p. 4; DD de 31.01.1877- p. 4; DD de 29.11.1879- p. 4; DD de 10.11.1880- p. 4; DD de 30.11.1881- p. 4. A “Província do Paraná” de 8.02.1879- p. 3 também  cita os festeiros eleitos da festa de N.Sra da Conceição. O juiz era o Dr. Generoso Marques dos Santos. Um dos noveneiros, Francisco David Perneta. E o único procurador, Fidêncio Antônio Munhoz.

(42) DD de 2.09.1876- p. 2

(43) DD de 9.09.1876- p.3

(44) Cf. DD de 3.02.1877- p. 3 (família de Candido José Ferreira); DD de 18.09.1880- p. 3; DD de 23.11.1881- p. 4 (familiares do capitão Nestor Augusto Morocines Borba); DD de 7.02.1883- p.3 (nota de agradecimento de Maria da Conceição e Souza Araújo); DD de 30.04.1887- p. 2 (família de Generoso de Paula Gomes. Segundo o DD de 29.04.1887- p.2, este era conhecido como “mestre Generoso” e teve uma pequena banda de música. Romário Martins informa que Generoso era filho natural do tropeiro Francisco de Paula e Silva Gomes (1802-1857), “ardoroso propagandista da elevação da 5ª. Comarca de São Paulo à categoria de Província”. Herdou dele seu violino) (cf MARTINS, Romário—“História do Paraná”, op cit, p.264). Um dado a mais, revelador da personalidade de Fidêncio: na “Província do Paraná” de 3.10.1879- p. 3, seção “Juízo de Órfãos”, ele é mencionado como tutor dos filhos do f (= falecido?) Arcenio Pompilio de Paula.   

(45) DD de 15.09.1883- p. 3 

(46) Memento: “Cada uma das duas preces de cânon da missa” (dic. Aurélio)

(47) DD de 16.04.1885- p. 2

(48) DD de 26.04.1885- p.4

(49) MURICY, Andrade—“Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro”. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1951- v. II, p. 84 e 1952- v. III, p. 357  

(50) FONSECA, Ricardo Marcelo e GALEB, Maurício—“A Greve Geral de 17 em Curitiba”. Curitiba: IBERT, 1996- p. 26 e 98

(51) DD de 25.07.1883- p.4

(52) DD de 28.07.1883- p.4  

(53) DD de 24.04.1880- p. 4; DD de 5.05.1880- p. 4 

(54) DD de 15.11.1883- p. 4

(55) DD de 21.11.1883- p. 4  

(56) DD de 6.12.1883- p. 4

(57) DD de 24.01.1887- p.2; ver também DD de 17.01.1886- p. 3; DD de 23.07.1886- p.2

(58) “DICIONÁRIO Histórico-Biográfico do Estado do Paraná”- op cit, p. 471    

(59) DD de 24.11.1883- p. 4

(60) DD de 27.12.1873- p.4. Cf também o “Boletim Informativo da Casa Romário Martins”- Fundação Cultural de Curitiba- v.23, nº 110, março de 1996- p. 7, 18 e 20

(61) DD de 8.04.1874- p.3 (seu nome consta aí como “Frederico Antonio Munhós); ver também DD de 28.03.1874- p. 3. 

(62) DD de 14.09.1888- p.2

(63) “DICIONÁRIO Histórico-Biográfico do Estado do Paraná”, op cit, p. 307

(64) DD de 15.12.1880- p. 3

(65) DD de 1.04.1882- p. 3

(66)  DD de 9.03.1881-p.3

(67) DD de 28.06.1881- p.2

(68) DD de 11.12.1879- p.3

(69)Cf o link abaixo, acessado em 11.04.2011:




Primeiro prédio da Estação Ferroviária de Curitiba- início da década de 1890
 (acervo Cid Destefani)

Rua da Liberdade (atual Barão do Rio Branco)- à esq, estação de bondes de mulas;
 à dir, prédio da Assembleia Legislativa- 1893 (acervo Cid Destefani)

Pipeiro entregando água no centro de Curitiba- 1900
 (acervo Cid Destefani)


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