1. INTRODUÇÃO
Meu
interesse, neste estudo, consiste em investigar a vida de um personagem
relevante no desenvolvimento da economia do mate no Paraná, e também a dos seus
familiares, tanto ascendentes como descendentes, de modo a ampliar o
conhecimento não só sobre eles mas também da sociedade paranaense de que fizeram
parte.
O
mate foi a atividade econômica preponderante em certo período da nossa história.
Representou em boa medida a base material da sociedade/civilização que se
constituiu neste pedaço do território brasileiro. Essa atividade predominou por
mais de cem anos, a partir da terceira década do século XIX, durante todo o Império
(e algumas décadas além dele), tendo sido decisiva para a própria constituição
do Paraná como entidade política independente. Durante esse período o Paraná
dependeu fundamentalmente da exportação do mate para o seu progresso, fonte de
renda para o setor privado e de receita para o governo.
O
tenente-coronel (da Guarda Nacional) Caetano José Munhoz, doravante CJM
(1817-1877) foi um dos primeiros a implantar engenho de erva-mate no planalto
curitibano, em 1834, movido a energia hidráulica. Até então eles só existiam no
Litoral (1). Destacou-se
nessa atividade econômica a partir daí, durante quatro décadas, até falecer, em
1877. Destacou-se também pelo espírito inovador: foi o primeiro a instalar
engenho movido a vapor em Curitiba, em 1872, antes mesmo do Barão do Serro
Azul. Após a morte, seus engenhos e marcas registradas foram vendidos a outras
empresas.
Conhecer
a vida de CJM, e também de seus familiares, é conhecer a vida de representantes
da elite daquela sociedade cujo fundamento econômico era o mate (essa elite também
já foi chamada de burguesia do mate). Como decorrência da posição de CJM no
âmbito do sistema produtivo, ele ocupou também posições sociais de relevo,
ainda no tempo da 5ª comarca da província de São Paulo (promotor público
interino, major da Guarda Nacional). CJM tinha 36 anos quando o Paraná
emancipou-se de São Paulo, em 1853. Assim ele tanto pertence à 5ª. Comarca como
à província do Paraná. Com a emancipação, a cidade de Curitiba, que contava
então quase 7 mil habitantes (e o “termo” de Curitiba, 21 mil), torna-se
capital da nova província do Império, vencendo a disputa com Paranaguá.
Meu
interesse básico estará voltado para
as circunstâncias concretas da trajetória de vida de CJM, a partir de menções feitas
a ele nas fontes disponíveis --- referências na historiografia paranaense, periódicos,
documentos diversos no acervo de órgãos públicos etc. Desse modo, chego a
complementar, esclarecer ou retificar informações sobre CJM contidas em algumas
obras dessa historiografia. Como exemplos de retificação, cito aqui a época (e
implicações) do incêndio em seus engenhos e a sua primazia na implantação
de engenho a vapor em Curitiba.
O
estudo dará uma ideia do papel que CJM desempenhou em sua comunidade, não só na
atividade principal, de caráter privado, como senhor de engenho de mate, mas
também na vida pública da província do Paraná, como comandante da Guarda Nacional,
juiz municipal substituto, deputado da Assembleia Provincial, vereador etc. Além
disso, procurará mostrar, na medida da disponibilidade das informações, aspectos
da sua vida familiar e social, permitindo vislumbrar as características,
instituições e mentalidade da sociedade local, à qual pertencia. Por isso,
incorporei também informações sobre seus familiares até 1889, obtidas principalmente como subproduto
da pesquisa no “Dezenove de Dezembro” sobre CJM. A leitura “transversal” dessas
informações sobre os familiares poderá enriquecer a nossa visão da época dele.
Mostrarei que um personagem importante da
economia do mate, pertencente à classe detentora dos meios de produção, ocupou
também (não por acaso) posições-chave em outras esferas da vida social, o que
representa um caso individual, exemplificativo, de como se traduz na prática a dominação
de classe, que pode se dar diretamente (como neste caso) ou indiretamente.
A literatura sociológica entende por burguesia
a classe social que detém a propriedade dos meios de produção (como terra,
máquinas e equipamentos) e contrata força-de-trabalho para desenvolver as
atividades produtivas, mediante a utilização coordenada desses fatores.
Numa sociedade escravista como aquela em que
viveu CJM, os escravos representaram uma força-de-trabalho diferenciada, pois
eram propriedade dos senhores, obrigados a prover o seu sustento em
contrapartida ao trabalho despendido. Nessa sociedade polarizada, ele nasceu
numa família pertencente à classe dos senhores, que originou a burguesia do
mate local. Faleceu em 1877, antes portanto da abolição da escravatura,
ocorrida em 1888. Assim, só a partir desse ano é que o capitalismo aqui se
completa formalmente, com a existência nítida das duas classes sociais
fundamentais que o caracterizam: a da burguesia e a dos trabalhadores
assalariados (2).
*
O período de vida de CJM corresponde ao início
e primeiras décadas de desenvolvimento da economia do mate no Paraná.
As atividades principais dessa economia
relacionavam-se à extração da erva-mate e seu processamento industrial nos
engenhos instalados para tal fim. O mate aqui produzido destinava-se à
exportação, atendendo à demanda dos mercados platinos (Argentina e Uruguai) e
do Chile. Tais atividades afirmam-se crescentemente a partir de 1820, quando
Francisco de Alzagaray, empreendedor argentino e bom conhecedor do mercado, se
radica em Paranaguá.
A burguesia do mate formou-se no litoral e
“serra acima”, no planalto curitibano, em particular. Era
integrada tanto por industriais quanto por comerciantes. Apoiava
majoritariamente o Partido Conservador. Por outro lado, os latifundiários e
criadores dos Campos Gerais vinculavam-se mais ao Partido Liberal (3).
Na política do período provincial (1853-1889),
vai se destacar, como líder do Partido Conservador, Manoel Antônio Guimarães
(1813-1893), que receberia o título de Barão e depois Visconde de Nácar,
residente em Paranaguá. Por outro lado, o chefe do Partido Liberal será o
Conselheiro Jesuíno Marcondes de
Oliveira e Sá (1827-1903), de Palmeira.
À
medida que a economia do mate evolui, sua burguesia se consolida, influenciando os diversos aspectos da vida
social.
A
classe dominante local, integrada (não exclusivamente) por representantes da
burguesia do mate, melhorou a infraestrutura econômica da província (estrada da
Graciosa, ferrovia Curitiba-Paranaguá), promoveu a imigração, modernizou a
cidade de Curitiba (com a realização de obras urbanas, inclusive a criação do
Passeio Público em 1886 e com a edificação de palacetes), influenciou as
opiniões correntes expressas na imprensa da época (iniciada com o “Dezenove de
Dezembro”), adotou certos usos e costumes relacionados à alimentação,
vestuário, estilo e condições de habitação, reprimiu os “fandangos e batuques”,
criou a primeira universidade do Brasil etc (4).
Mas este não é um estudo sobre uma determinada
classe nem sobre a economia do mate em geral. É apenas uma investigação das
especificidades concretas – em dado tempo e lugar – da vida de um indivíduo e
seus familiares, pertencentes à camada dirigente da sociedade em que viveram, as
quais interessam na medida em que ajudam a caracterizar essa mesma sociedade,
que é a sociedade curitibana do tempo do Império, de caráter escravista, cuja
prosperidade material dependia principalmente de um produto de exportação – o
mate.
Este
é assim um estudo sobre a história local que privilegia a dimensão do indivíduo
mas não ignora o contexto social em que eles estão inseridos e que condiciona suas ações.
Para a caracterização desse contexto me apoiei largamente em autores
reconhecidamente dignos de confiança, citados ao longo do trabalho.
*
Uma outra justificativa para a realização do
estudo refere-se ao fato de que CJM teve uma longa descendência, cujos
representantes desempenharam diferentes papéis em nossa vida social. De seu
primeiro casamento nasceram 10 filhos, e do segundo, 8. Além de atuarem na economia
ervateira, ou juntamente com ela, constata-se a presença de descendentes de CJM
na política, no serviço público, no direito, no magistério, em organizações
militares, na literatura, no ensaísmo histórico e sociológico etc. Dois desses
descendentes destacaram-se na política, chegando a exercer a chefia do poder Executivo
paranaense: Caetano Munhoz da Rocha,
seu neto, foi presidente do Estado de 1920 a 1928, e Bento Munhoz da Rocha Neto, seu
bisneto, foi governador no período 1951-55. Aliás, Samuel Guimarães da Costa
destaca, como “uma curiosa coincidência de significado histórico”, que em 1953
-- ano do centenário da emancipação política do Paraná -- os três poderes do
Estado estavam nas mãos de bisnetos de CJM: o Executivo, então chefiado por
Bento, o Legislativo pelo deputado Laertes Munhoz, e o Judiciário pelo
desembargador Munhoz de Mello,
valendo lembrar que
Caetano José Munhoz participara há cem anos passados das solenidades de posse
do primeiro governador da Província Zacarias de Góes e Vasconcelos, por sinal
homenageado e recepcionado em sua residência (5).
Dos
seis grupos familiares tradicionais indicados por Ricardo Costa de Oliveira, que
constituem o “tronco dos povoadores e fundadores da classe dominante do Paraná”
(6), CJM
descende de dois – o de Matheus Martins Leme e o de Balthazar Carrasco dos
Reis, enquanto sua primeira esposa, D. Francisca Cândida, descendia de um
terceiro, o de João Rodrigues França.
O
conceito de “classe dominante” é assim entendido por esse autor:
A classe
dominante é uma formação social heterogênea, mas unificada por um eixo principal
no controle das riquezas materiais, simbólicas e na posse de um conjunto de
capitais sociais e políticos que permitem a sua reprodução, assim como o
exercício da dominação e do poder político. A classe dominante compõe um bloco
no poder que “indica assim a unidade
contraditória particular das classes ou frações de classe politicamente
dominantes, na sua relação com uma forma particular do Estado capitalista”
(POULANTZAS, 1977, p.229). O bloco no poder é formado pelas diversas frações
que apresentam uma unidade contraditória. O conceito de bloco no poder não se
resume apenas à formação capitalista, pode ser operacionalizado na análise de
formações pré-capitalistas, como no caso do Estado Escravista Colonial no
Brasil (SAES,1985, p. 94-95) (7).
Em
nosso caso,
A fração
ervateira da classe dominante paranaense foi aquela que durante mais tempo
organizou a hegemonia dentro do bloco no poder regional na periodização
estudada de 1853-1930 . /.../ A força da fração dos grandes proprietários de
terra ligados ao tropeirismo e à pecuária também conheceu momentos de poder (8).
CJM
e seus familiares, que se dedicaram à mesma atividade econômica, pertenceriam pois à fração ervateira da classe
dominante paranaense.
*
Por
último, gostaria de alertar o leitor, por um imperativo ético (explicitação de
um possível viés do pesquisador), que também descendo de CJM, pois meu pai era
seu bisneto, e neto de Florêncio José Munhoz, um dos 10 filhos do seu primeiro
casamento. À parte todo o interesse e a simpatia que o personagem em questão
desperta em mim, devido a essa relação de parentesco, estou ciente da
conveniência de manter sempre um distanciamento crítico, aquele do cientista
social, para que eu possa avaliá-lo objetivamente, no contexto sociológico e
histórico ao qual pertence.
NOTAS
(1) Antes de 1820, só
havia em Curitiba e na Lapa unidades de beneficiamento do mate muito
rudimentares, com base na força humana (de índios ou negros), segundo LINHARES,
Temístocles—“História Econômica do Mate”. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969-
p. 169 e 171. A partir de 1820, como se verá, a atividade ervateira se
desenvolverá mais rapidamente no litoral, inclusive com a implantação de
engenhos movidos a energia hidráulica na região de Morretes.
(2) Octavio IANNI, em
“As Metamorfoses do Escravo”- S.Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1962, equipara os escravos a
semoventes e fala em castas sociais ao referir-se aos senhores e escravos, no
que é criticado por Eduardo S. PENA. No primeiro caso, este critica a visão
economicista de Ianni que o leva a menosprezar a personalidade do escravo, sua
capacidade de resistir a uma ordem social injusta. Mostra que na comarca de
Curitiba os escravos souberam explorar, no âmbito jurídico, as oportunidades
que a lei de 1871 (lei do Ventre Livre) lhe ofereceram para obter a sua
liberdade. Por outro lado, ao usar o conceito de castas sociais, quando o
comportamento do escravo é condicionado pelos desígnios do senhor, Ianni impede uma análise da dinâmica das relações
escravistas, das contradições e lutas aí presentes, de que resultam transformações (cf. PENA, Eduardo Spiller—”O
Jogo da Face:a astúcia escrava frente aos senhores e à lei na Curitiba
provincial”. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1999- p.115, 125 e 132-133).
(3) OLIVEIRA, Ricardo
Costa de—“O Silêncio dos Vencedores: Genealogia, Classe Dominante e Estado no
Paraná”. Curitiba: Moinho do Verbo, 2001, p. 170.
(4) Para uma ampla
caracterização dessa sociedade apoiada no mate, no período provincial,
consultar PEREIRA, Magnus Roberto de Mello—“Semeando Iras Rumo ao Progresso
(Ordenamento jurídico e econômico da sociedade paranaense, 1829-1889)”.
Curitiba: Ed. da UFPR, 1996.
(5) Apud OLIVEIRA,
R.C.de – op. cit., p.6
(6) OLIVEIRA, R.C.de
– op. cit., p.40
(7) Ibid., p. 266
(8) Ibid., p. 267
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