9. CONSIDERAÇÕES FINAIS
“O importante não é o que fazem de nós, mas o
que nós próprios
fazemos daquilo que fazem de nós”.
J.P.
Sartre (1)
Se não considerarmos a influência de fatores
genéticos, o homem é produto do meio social. Quais eram as condições do meio
que “produziu” CJM e seus familiares?
Ele nasceu e viveu no Brasil do século XIX, no
tempo do Império, antes da Lei Áurea. Viveu assim numa sociedade escravista, marcada pela
desigualdade social extrema. Nessa sociedade de senhores e escravos, pertencia à classe
dos senhores. Seu pai, um senhor de terras e escravos, era agricultor e criador de gado na baía de
Paranaguá, além de também se dedicar ao comércio exportador. E a família de sua
mãe era de posses. O pai dela, arrematante do serviço de navegação do rio
Cubatão (ou Nhundiaquara), era neto do fundador de Antonina, em cujas terras
erigiu-se uma capela que daria origem à cidade.
Ainda muito jovem, CJM entrou para o mundo dos
negócios. Seu nome está associado à instalação em 1834, quando tinha apenas 17
anos, de um dos primeiros engenhos de beneficiamento de erva-mate (movido a
energia hidráulica), no planalto curitibano. O mate, desde aproximadamente 1820
-- e por mais de cem anos -- seria o sustentáculo da economia paranaense, que
com suas exportações atendia a demanda dos mercados platino e do Chile e se
apoiava parcialmente no trabalho escravo. CJM se destacaria nessa economia do
mate como um de seus principais representantes. Foi o primeiro a instalar, em
Curitiba, engenho de mate a vapor, em 1872.
Naquela sociedade, como na nossa de hoje, as
pessoas que dominavam o sistema produtivo ocupavam também, direta ou
indiretamente, as principais posições sociais e políticas. CJM por isso viria a
ocupar algumas dessas posições de relevo.
Mas
a sua era uma sociedade em que pesavam mais certos preconceitos e convenções. Um
bom exemplo do convencionalismo da época é o episódio, relatado por Alcides
Munhoz, da amiga da família que é aconselhada por CJM a não estar presente na
recepção que ele ia dar ao Conselheiro Zacarias só por causa da “incerteza
matrimonial” dela...
Essa sociedade, dentre outras características,
era católica, e o catolicismo, a religião oficial do Estado. Mas isso não
impedia que a escravatura fosse encarada com naturalidade, considerada uma
instituição social como qualquer outra, inclusive pelas entidades religiosas.
Surgindo nesse meio social, com todos os
condicionamentos daí decorrentes, quais seriam as opções que se ofereceriam a
CJM ?
Em primeiro lugar, ele se dedicou desde muito
cedo, como já foi dito, às atividades econômicas. Poderia ter ido estudar na
Corte, tornar-se “doutor em leis”, aquilo que desejaria, mais tarde, para seu
filho Alfredo. Era comum, no Paraná provincial, as famílias mais abastadas
mandarem os filhos estudar nos centros maiores. Mas isso não ocorreu com CJM,
que optou pelo mundo dos negócios.
Tornou-se então um dos principais ervateiros
de Curitiba em seu tempo. Sua importância relativa no âmbito do sistema
produtivo local levou-o a ocupar cargos públicos relevantes em outras
áreas. Foi nomeado comandante de um
corpo de cavalaria da Guarda Nacional da capital, e eleito deputado à Assembleia
Provincial, embora não tivesse muita vocação para ambas as funções. De certo modo, ocupar essas funções
representava uma imposição social.
Ocupou o cargo de deputado provincial por duas
vezes, nos biênios 1856-57 e 1860-61, mas aparentemente não foi um deputado
muito atuante, exercendo a secretaria da Assembleia em determinado período. De
qualquer forma, deu sua contribuição ao Poder Legislativo quando da discussão
do projeto destinado a regulamentar a exploração e processamento da erva mate,
visando coibir as falsificações e assegurar a boa qualidade da erva mate
exportada pelo Paraná, um problema recorrentemente discutido na época do ciclo
do mate. Também foi eleito vereador de Curitiba para o período 1877-80. Mas
praticamente não exerceu esse mandato, pois faleceu em julho de 1877.
Como tenente-coronel comandante da Guarda
Nacional, sua atuação deixaria a desejar, pois não cumpriu as metas
estabelecidas pelo governo central relativas ao recrutamento de voluntários
para a Guerra do Paraguai, o que serviu de justificativa para o presidente
Horta de Araújo suspendê-lo daquele comando, embora seja provável que tenham pesado mais, nessa decisão, as
divergências políticas entre os dois.
CJM devia ter um espírito antibelicista e
pouca vocação militar (por isso não recrutou suficientemente voluntários para a
Guerra do Paraguai). Poderia até ter optado por participar efetivamente da campanha
no Paraguai como fez seu colega ervateiro, ligado ao Partido Liberal, Luiz
Manoel Agner, embora este fosse bem mais jovem (2). Mas não optou por esse caminho. Devia
ter o caráter típico dos homens de negócios, que abominam a instabilidade
política e gostam de regras claras
e normas bem definidas. Isso permitiria
que CJM se saísse melhor como juiz municipal substituto, mais coerente com seu
perfil psicológico. Desempenhou esse cargo por, no mínimo, 14 anos, nos
períodos 1854-62 e 1870-1877, com exceção, talvez, de 1875.
CJM decidiu, antes de tudo, ser um
homem respeitável, conforme os padrões de sua época, ser um homem de
princípios, honesto (cf. as referências encontradas no jornal “Dezenove de
Dezembro”, e no trabalho de Louis Couty, sobre a qualidade de sua erva, que não
era falsificada, como outras). Adotando a escala de valores de seu meio social,
procurou corresponder a ela, sem questioná-la (especialmente quanto ao trabalho
escravo).
Alcides Munhoz salienta a questão do apego aos
princípios, por parte de CJM, quando afirma:
Meu avô, Tenente
Coronel Caetano José Munhoz, era um homem de caráter firme e de princípios
inabaláveis./.../ Era um homem de vontade e de ação /.../ (3).
Também Francisco Negrão salienta isso, quando
dá a sua impressão geral a respeito
dele, repetindo em parte Alcides
Munhoz (4):
/.../
era homem enérgico e lutador, de caráter firme e princípios severos inabaláveis”.
/.../ Homem honesto e laborioso, deu grande incremento à indústria” (da
erva-mate)./.../ Foi abastado capitalista e homem de grande valor moral. Deu
sólida educação a seus filhos.
CJM decidiu acatar as instituições sociais
então existentes, a sociedade tal como era, alinhando-se politicamente com o Partido
Conservador, o que é indicado pelo seu relacionamento com pessoas claramente
comprometidas com esse partido (Dr. Bento Fernandes de Barros, Manoel Antônio
Guimarães etc) e também pelo fato de que seu período de ostracismo político
coincide com o da predominância do Partido Liberal no poder. É interessante
observar que ele fez política a vida toda, assim como seu irmão Bento
Florêncio. Aliás, quando comparado a este, a pesquisa no jornal “Dezenove de
Dezembro” mostra que ele foi bem menos sociável, pois Bento Florêncio é
mencionado muitas vezes promovendo recepções, ou participando de eventos
sociais, ao contrário de CJM. Quanto à política, infere-se, pelas informações
aqui reunidas, que CJM foi prestigiado pelos presidentes Zacarias,
Beaurepaire-Rohan, José Francisco Cardoso (no início de sua gestão) e Lamenha
Lins. Mas os presidentes Horta de Araújo
e Carlos Augusto Ferraz de Abreu foram seus adversários explícitos.
Sua escrava Graciana só obteve a liberdade
pela compra, conforme uma edição do
DD de 1872 (5), em vez de
obtê-la “sem ônus algum”, o que
também acontecia na época. Isso
expressava uma postura contrária ao abolicionismo sem indenização ao
proprietário (opinião da corrente do Partido Conservador liderada por Manoel
Euphrasio, genro do Visconde de Nácar) ou expressava apenas a limitação de seus
recursos financeiros, dado o alto preço de um escravo?. De qualquer forma, uma
postura antiabolicionista é confirmada por outro fato: tão tarde quanto 20 de
fevereiro de 1877 ele ainda assina uma nota, publicada no DD do dia seguinte,
oferecendo gratificação a quem apreendesse um escravo fugido, de nome Justo (avaliado
em 1:200$000 no seu inventário), e ameaçava com o “rigor da lei” quem o estivesse
acoitando. Isso numa época em que a lei do Ventre Livre, de 28 de
setembro de 1871, já havia sido aprovada, e crescia o movimento pela
emancipação dos escravos.
CJM seguiu sem questionar uma outra
característica de seu meio social (e familiar), a de tornar-se católico.
O catolicismo era a religião oficial do Império. Nesse sentido pertenceu a algumas
irmandades vinculadas à Igreja Matriz e do Rosário (além da irmandade
mantenedora da Santa Casa de Misericórdia de Curitiba). Foi “festeiro” em
algumas festividades religiosas. Quando deputado, CJM participou da Comissão de
Assuntos Eclesiásticos da Assembleia Provincial.
Apesar de comprometida com o
escravismo, sua visão de mundo incluía a caridade cristã, que ele praticava
nessas irmandades, e também diretamente, com relação a pessoas de condição
social inferior. Uma edição do “Dezenove de Dezembro” de 1858 (6) publica nota
do porteiro da secretaria do governo provincial em que este agradece a certas pessoas “que o socorreram e se
prestaram caridosamente na sua
grave enfermidade”. Uma das pessoas citadas é o tenente-coronel CJM.
CJM não escolheu para si o
radicalismo ou fanatismo político: na briga entre Francisco de Paula Guimarães
e José Lourenço de Sá Ribas (cf. seção 5.1
do cap. 5), ambos tenentes-coronéis da Guarda Nacional, ele é elogiado pelo
primeiro e mantinha boas relações com o segundo.
Paula Guimarães refere-se às “maneiras
delicadas e honrosas” com que lhe tratou, e também “à grandeza de seu mérito e
à forma com que sempre costuma tratar a todos” (7).
Com
relação a Sá Ribas, ele foi colega de CJM na administração da Sociedade Harmonia em 1854 (cf seção 5.4 do
cap. 5). Sá Ribas era o secretário da
Sociedade, e CJM (ainda major) o tesoureiro (8). Além disso, Sá Ribas presidiu, em
1875, o conselho fiscal da Caixa Econômica da província, do qual CJM era
membro, como foi dito no cap. 4.
Tanto Sá Ribas quanto CJM integraram
a comissão (de quatro membros) que visitou o então presidente Sebastião
Gonçalves da Silva em sua residência e o convidou a assistir em 4 de julho de
1863, no hotel-Cassino Curitibano, “a partida que os amigos de S.Ex. lhe
oferecem como prova de consideração, estima e de reconhecimento pelos serviços
prestados a esta província” (9) (Sebastião assumira a presidência da
província um mês antes, em 5 de junho). O dep. Sá Ribas era filho do cap.
Lourenço Pinto (10), este
padrinho de batismo de Francisca, a primeira esposa de CJM.
Também revelador de sua psicologia é
a alegação de doença, para não julgar, em conselho de guerra, um colega da
Guarda Nacional. Preferiu esse caminho a se confrontar, abertamente, com o
presidente José Francisco Cardoso (11).
Quanto
aos filhos de CJM, eles optaram pelo serviço público, exceto José Caetano.
Foram empregados da Tesouraria da Fazenda Nacional, dos Correios ou militares.
Suas filhas casaram com ervateiros ou funcionários públicos. Foram donas de
casa. Mas a 2ª esposa de CJM, após enviuvar, dedicou-se ao magistério, assim
como a viúva de seu irmão Bento Florêncio.
O
último capítulo deste trabalho refere-se a um Munhoz de condição mais humilde.
Procurei aí caracterizar sua vida, da forma possibilitada pelas informações disponíveis,
não só para confrontá-la com a de CJM ou seus familiares, de “status” social
mais elevado, mas também para incorporar subsídios adicionais sobre como vivia nessa
sociedade uma pessoa de mais baixa posição na hierarquia social. Destaca-se, nesse
capítulo, a acusação injusta de que o contínuo/porteiro Fidêncio Munhoz foi
vítima, em decorrência certamente de uma postura preconceituosa contra ele,
pela sua condição social (ou talvez mestiça). Destaca-se também a atitude
progressista dele, indo à imprensa e denunciando o coronelismo da época. Da
mesma forma, tem um caráter progressista seus esforços para a criação, em
Curitiba, de uma sociedade operária, no ano de 1883.
NOTAS
(1) Apud MACIEL, Luis Carlos-- “Sartre”. Rio de Janeiro: José Álvaro Ed., 1967,
p.9
(2) Segundo o DD de
13.05.1876- p. 4, Luiz Manoel Agner tinha então 42 anos. Era assim 17 anos mais
jovem que CJM.
(3) MUNHOZ, Alcides--
“Folhas Cadentes”- op cit, p. 11
(4) NEGRÃO,
Francisco-- “Genealogia Paranaense”- op cit, v.I, p. 237
(5) DD de 10.01.1872-
p.3
(6) DD de 26.06.1858-
p. 4
(7) Cf. DD de
28.07.1866, p. 3, e DD de 4.08.1866, p.2.
(8) DD de 8.07.1854-
p. 3. Presidia a Sociedade Harmonia o Dr. Antonio Francisco de Azevedo.
(9) Cf. edição do DD
de 4.07.1863- p.3. Os outros integrantes da comissão eram Joaquim Dias da Rocha
e José Matias Gonçalves Guimarães. Na p.4, afirma-se que os amigos do
Dr.Sebastião ”oferecem-lhe esta noite no salão do Cassino Curitibano uma
chávena de chá”. Alguns dias depois, no DD de 8.07.1863, p.4, consta matéria
sobre a “partida” oferecida ao Dr. Sebastião. A reunião terminou às 2 horas. O
salão estava “decorado com elegância, e simplicidade/.../ O belo sexo
apresentou-se como sempre digno do seu epíteto”.
(10) NICOLAS, Maria--
“130 Anos de Vida Parlamentar Paranaense”- op cit, p. 84
(11) DD de 22 e
26.09.1860
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