2.
CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS
Antes
de prosseguir, gostaria de incluir aqui algumas considerações sobre a metodologia
empregada para a elaboração deste trabalho.
Meu
ponto-de-partida foi a “Genealogia Paranaense”, de Francisco Negrão. Obtive ali
informação, bem organizada, sobre os ancestrais de meu pai, pelo seu lado
materno, pertencentes à família Munhoz, provindos de Cádiz, na Espanha, que se
estabeleceram em Paranaguá, no litoral paranaense, no século XVIII. Sobre eles
tinha apenas vago conhecimento, e disperso, que adquiri convivendo com meu pai
e também com minha avó Arabela, filha de Florêncio José Munhoz (neto), homônimo
de seu avô. Seus nomes, aliás, também constam daquela “Genealogia”.
Lendo
o que ali está contido, e interessado em aprofundar-me na história do Paraná
(não tanto da grande História mas principalmente
a dos pequenos eventos, a da vida cotidiana das pessoas), decide eleger, como
tema de uma pesquisa, o estudo desses ancestrais, não só para conhecer mais as
minhas próprias origens mas principalmente para tomá-los como amostra da sociedade
de que eles eram parte integrante. Tomei assim como referência básica o
tenente-coronel Caetano José Munhoz. Dele decorre, como disse, uma longa descendência,
cujos membros desempenharam o papel que lhes coube na sociedade paranaense de
sua época -- não necessariamente “importante”, de acordo com a História
convencional -- mas digno de interesse por ser revelador, de uma maneira ou de
outra, dessa mesma sociedade (todavia, como
vimos, CJM foi um cidadão “importante” na comunidade em que vivia).
Também
pesquisei sobre os ancestrais de CJM, suas origens familiares, de modo a obter
uma compreensão mais completa de seu “status” social, tanto por parte de pai
quanto de mãe. Mas a ênfase maior foi sobre o seu lado paterno, dos membros da
família Munhoz, que provieram, como disse, da Espanha e se radicaram no litoral
paranaense. CJM foi o primeiro a se estabelecer “serra acima”, em 1834, com um engenho
de erva-mate movido pelas águas do rio Belém.
A
obra de F. Negrão -- com diferentes graus de informação sobre os ancestrais,
estendendo-se mais sobre uns e menos sobre outros -- me forneceu, de qualquer
forma, um roteiro básico para a minha pesquisa. O lapso de tempo em questão
envolveu, considerando a história do Paraná, o período anterior a 1853, e o
período posterior a esse ano, quando a 5ª Comarca da província de S. Paulo
emancipou-se politicamente, constituindo a província do Paraná.
Para
o primeiro período, depois da “Genealogia” (que foi útil tanto para o primeiro
quanto para o segundo período), o trabalho mais importante a fornecer
informações sobre os ancestrais de CJM é o do patrono dos nossos historiadores,
o cronista Antonio Vieira dos Santos, cuja “Memória Histórica de Paranaguá”, de
1850, refere-se a eles em várias
oportunidades. Outra fonte valiosa de informação para esse período é o “Boletim
do Arquivo Municipal de Curitiba”, dirigido por Francisco Negrão, que publicou
as atas da Câmara Municipal de Curitiba de 1693 a 1873, refletindo assim a vida
da cidade em que viveu CJM e sua família. Nessas atas, são mencionados CJM e
seus familiares. O Boletim abrange os volumes 1 a 66, disponíveis para
consulta na Divisão de Documentação Paranaense da Biblioteca Pública do Paraná.
A
partir da citação, por Vieira dos Santos, do pai de CJM, como proprietário de
uma fazenda na baía de Paranaguá, busquei e encontrei no Arquivo Público do
Estado o registro dessa propriedade, conforme exigência da Lei de Terras. Esse
procedimento foi adotado algumas vezes, vale dizer, a busca dos documentos
originais sugerido por essas, e outras fontes consultadas. Mas também adotei o
procedimento inverso, partindo da documentação primária relativa a CJM e
familiares, consultando-os no Arquivo Público do Estado, consulta essa sugerida
pela menção de seus nomes na catalogação do acervo dessa entidade.
Quanto
ao período posterior a 1853, a fonte básica para obter informações sobre CJM, e
também seus familiares, foi a da imprensa da época, especialmente o primeiro
jornal publicado no Paraná, o “Dezenove de Dezembro”, que abrange todo o
período provincial, de 1854 a 1890.
Esse
jornal começou a ser publicado em 1º de abril de 1854. Seu proprietário era
Cândido Lopes, dono de uma tipografia em Niterói, que se transferiu para
Curitiba estimulado pelo primeiro presidente da província do Paraná, Zacarias
de Góes e Vasconcelos, que nele publicaria os atos oficiais. Inicialmente o
jornal lançava uma edição por semana. A partir de 1871 passou a publicar duas
edições. Tornou-se diário em 1884 mas depois retornou à situação anterior. Em 5
de setembro de 1885 passou a ser o “órgão do Partido Liberal”, absorvendo a
“Província do Paraná”. Sua publicação prosseguiu até 9 de abril de 1890, sendo
o único periódico que abrange todo o
período provincial do Paraná, apenas com uma breve interrupção (depois da
edição de 18 de maio de 1861 o “Dezenove de Dezembro” só voltou a circular em 5
de novembro de 1862) (1). O DD abrange assim praticamente todo o
período da história do Paraná independente no tempo do Império e contém
informações preciosas sobre os diferentes aspectos da vida da província, nas
notas políticas e sociais, nos anúncios comerciais, nos obituários, na
programação das companhias de teatro etc, além naturalmente das matérias sobre
a administração pública que publicou como “diário oficial”. Por isso, esta
monografia o utilizou sistematicamente como fonte de pesquisa para caracterizar
as circunstâncias objetivas da vida de CJM, e também de seus familiares, dentro
da sua abrangência temporal, que coincide com a da época de CJM, época
escravocrata e monárquica, encerrada no final da década de 1880.
Complementarmente,
também outros periódicos locais foram utilizados. Consultei-os todos -- esses e
o “Dezenove de Dezembro” -- no precioso acervo, microfilmado, disponível na
Divisão Paranaense da Biblioteca Pública do Paraná. As citações aqui
transcritas dessas fontes tiveram a sua ortografia atualizada. Tais informações
orientaram a busca de documentos originais no Arquivo Público do Paraná, como
já afirmei.
Também
fui orientado pelas menções a CJM contidas em diversas obras da historiografia
paranaense, como as de Ermelino de Leão, Romário Martins, Newton Carneiro,
Temístocles Linhares, David Carneiro, Maria Nicolas etc., além da produção
universitária mais recente, representada pela importante pesquisa de Cecília
Westphalen sobre o porto de Paranaguá e a dissertação de mestrado de Eduardo
Spiller Pena, que se baseou no inventário de diversos ervateiros, inclusive no
de CJM, a cujo documento original também tive acesso, no Fórum Cível de
Curitiba. Outra fonte muito útil foi o “Dicionário Histórico-Biográfico do
Estado do Paraná”, com verbetes escritos por Cecília Maria Westphalen, Altiva
Pilatti Balhana, Cassiana Lacerda Carollo, Marta Morais da Costa e Lina Benghi.
Para
a caracterização da família, especialmente em certos aspectos de sua
intimidade, apoiei-me em dois livros: no de Alcides Munhoz intitulado “Folhas
Cadentes”, elogio de seu tio (e patrono na Academia de Letras do Paraná)
Alfredo Munhoz, filho de CJM, e no de Lilia Albuquerque Vellozo -- “Revivendo
Fatos da Infância e da Adolescência” – em que registrou as recordações de sua
avó Augusta Munhoz Negrão relativamente ao pai dela, CJM. Nessa questão, também
me servi do “Memorial de Família” de Eremir Bley Corrêa, por conter os resultados
de sua pesquisa sobre os familiares em fontes primárias (livros de batismos, casamentos
e óbitos), que complementei com dados obtidos na Catedral de Curitiba, Mitra
Diocesana de Paranaguá e Cemitério Municipal S. Francisco de Paula.
Vale
salientar ainda que se a abrangência temporal desta monografia se estende até o
final do Império, ela inicia na segunda metade do século XVIII, quando os
ancestrais de CJM se estabeleceram em Paranaguá, vindos da Espanha, e se uniram
às famílias locais, assunto abordado na seção das “Origens familiares” de CJM,
no cap. 3.
Uma
preocupação permanente que tive, ao longo da pesquisa, foi jamais esquecer o
contexto econômico, político e ideológico que condicionou a vida dos
familiares. No caso deste trabalho
sobre CJM, que se ampliou para incluir seus ascendentes e descendentes, tal
contexto refere-se a um longo período de tempo, que na História do Brasil
corresponde ao fim da época colonial e se estende por toda a vida do país
independente, até o final do Império. Esse é o lapso de tempo desta monografia,
que poderá ter prosseguimento num segundo esforço de pesquisa, relativo ao
período republicano, chegando até os nossos dias.
Na
época do pai de CJM, em Paranaguá, as questões às quais se voltava a sociedade
local (ou pelo menos a sua elite) eram as de que o país tivesse uma
Constituição (ele assinou, no começo de 1824, uma manifestação da Câmara de
Paranaguá pedindo que D. Pedro I sancionasse o projeto de Constituição); a da consolidação
da Independência, que determinou a criação em Paranaguá da Sociedade Patriótica dos Defensores da Independência e Liberdade
Constitucional (à qual pertenceu o pai de CJM); a da luta pela emancipação
da 5ª Comarca da província de S.Paulo, dentre outras. Posteriormente, no tempo
de CJM, vivia-se aqui, como já foi dito, o “ciclo do mate”, D. Pedro II passara
a reinar no país desde 1840 (e tal reinado se estenderia até 1889, quando se
proclamou a República), a província do Paraná enfim se constituíra em 1853, a questão
da escravidão dividia opiniões, provocara o incidente com o navio inglês
“Cormorant” na baía de Paranaguá e era importante para CJM e familiares pois possuíam
escravos, a Guerra do Paraguai (1864-70) afetava a vida do país, e também a de
CJM, tenente-coronel da Guarda Nacional, ou a de alguns de seus filhos, que
atingiram a idade adulta no tempo do Império. Para a maior compreensão dessas
questões nacionais, apoiei-me na historiografia que me pareceu mais fidedigna a
seu respeito.
Procurei
incorporar o maior número de informações que obtive relativas à vinculação de CJM
e seus familiares à elite paranaense de sua época, visando comprovar a
pressuposição inicial, que acredito ter sido confirmada. São informações que se
referem não só à atividade econômica que desenvolveram mas também ao seu nível
de renda, seu grau de instrução, cargos públicos que ocuparam, seu círculo
social, o relacionamento com o governo (por exemplo, participação em
arrematações e licitações) etc. Também incorporei informações, quando possível,
sobre pessoas próximas aos familiares, para reforçar a caracterização dessa
elite local.
Outro
critério adotado para incluir informações a este trabalho foi o da sua
relevância em mostrar como se apresentava Curitiba, ou a província do Paraná,
no tempo do Império, a partir de 1854 (quando se inicia a imprensa local, fonte
principal dessas informações), relativamente aos aspectos físico-territorial,
econômico, social, político ou ideológico.
Assim,
seguindo aqui essa ordem, procurei incorporar informações sobre Curitiba, mostrando
que a região central assentava-se entre os rios Ivo e Belém, quais eram suas
principais ruas (com os nomes da época), as principais igrejas, os três
caminhos que ligavam Curitiba ao litoral, a conclusão da estrada da Graciosa em
meados dos anos de 1870, o uso de diligências para o transporte público; os
engenhos de mate existentes e quem eram os principais ervateiros da época; as
atividades comerciais, especialmente as de exportação; o tamanho da população
da província e dos principais núcleos urbanos, o peso dos escravos nessa
população; os usos e costumes; os clubes sociais existentes, as formas de
lazer, em que destacavam as festas religiosas; a importância da religião católica
(que era a religião oficial do Estado), as irmandades de leigos; a situação da
saúde: a inauguração do hospital da Santa Casa de Misericórdia de Curitiba, a
atuação do Dr. Murici e de outros médicos que aqui clinicavam; a situação da
educação: as escolas primárias e secundárias existentes, os “exames de preparatórios”,
os (poucos) estudantes paranaenses que estudavam fora da província; a atuação
dos partidos Liberal e Conservador, numa província subordinada ao governo central (pois o regime era então unitário e
não federativo, como passou a ser na República); o sistema eleitoral da época,
em que se escolhiam vinte deputados para a Assembleia provincial, dois para a
Câmara dos Deputados, sediada no Rio de Janeiro (“na Corte”) e uma lista
tríplice para o Senado, da qual o Imperador optava por um nome que seria o senador
do Paraná, cargo que era então vitalício; a escolha de vereadores de Curitiba,
mas não de prefeito, pois não houve esse cargo no tempo do Império, se
excetuarmos o período de 2 anos e 8 meses em 1835-1838; as idéias dominantes e
os periódicos que as vinculavam etc.
Todas
essas informações, e outras mais, constam deste trabalho, não de forma
sistemática, seguindo o critério acima, mas dispersas ao longo dele. Acabaram
sendo incorporadas, mais ou menos ao acaso, à medida que se procurava
caracterizar a vida dos familiares. Estes foram definidos previamente como o
objeto deste trabalho, que priorizou as pessoas e não as categorias
sociológicas abstratas. Todavia, tal opção metodológica foi alimentada pela
esperança de que o trabalho contribua, seguindo esse caminho alternativo, para
o conhecimento da sociedade em que eles viveram.
Preferi
citar textualmente certas passagens dos periódicos antigos a dizer a mesma
coisa com minhas próprias palavras, visando não só assegurar a precisão da
informação obtida mas também apresentar uma amostra do estilo e da linguagem da
época, onde aparecem às vezes expressões curiosas.
Reuni,
num mesmo capítulo, as informações obtidas sobre três mulheres da família de
CJM, procurando também contribuir, de alguma forma, para a compreensão da condição
feminina no tempo do Império. São elas a 2ª esposa de CJM, D. Narcisa, a esposa
de seu irmão, D. Maria do Céu, e sua neta Francisca. As duas primeiras, após
enviuvarem, dedicaram-se ao magistério. A terceira também já se encaminhava
para ele, quando se casou, revelando que
tal ocupação era então uma das (poucas) opções profissionais oferecidas às mulheres
solteiras ou viúvas instruídas.
Cabe
salientar, por fim, que enquanto realizava minha pesquisa no “Dezenove de
Dezembro”, verifiquei que Fidencio Antonio Munhoz é frequentemente mencionado no jornal. Trata-se de um Munhoz de
condição subalterna, contínuo/porteiro no serviço público. Ele era talvez
membro dessa mesma família Munhoz de emigração mais recente para o Brasil a que
pertencia CJM, embora seu nome não conste na “Genealogia Paranaense”, o que não
é de admirar-se, dado o caráter enviesado da obra. Resolvi então tomá-lo também
como objeto de estudo, dedicando a Fidencio o capítulo final do trabalho, a fim
de indicar as diferenças (e semelhanças) entre os seus fatos biográficos e os
dos familiares de CJM, vale dizer, estabelecendo um confronto entre o
contínuo/porteiro e as pessoas que ocupavam posição mais elevada na hierarquia
social.
NOTA
(1) A interrupção da
publicação do DD foi uma decorrência da perda do contrato que o jornal mantinha
com o governo da província do Paraná em 1861 para publicação dos atos oficiais.
O presidente José Francisco Cardoso, que não era apoiado nem pelos liberais nem
pelos conservadores, requisitou espaço no jornal para utilização política em
seu interesse, com o que Cândido Lopes não concordou, resultando daí a perda da
subvenção que recebia e a criação em fevereiro de 1861 do “Correio Oficial” por
parte do governo da província, que não perdurou por muito tempo, possibilitando
o reaparecimento do DD em novembro de 1862. Cf “Dicionário Histórico-Biográfico
do Estado do Paraná”. Curitiba: Chain; Banco do Estado do Paraná, 1991- p. 123;
NEGRÃO, Francisco—“Genealogia Paranaense”- v.1- Curitiba, 1926, p. 281-2
(edição fac-similar da Imprensa Oficial do Estado).
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